«Os séculos passaram sobre a vila como as aves, deixando as suas fezes. Os séculos passaram, desfazendo sombras de forcas, e higienizando, e espalhando o seu fumo fabril sobre a paisagem. Houve, por duas gerações, certo fulgor, aquilo a que chamavam o progresso, isto é, O caminho para a frente, como se existisse essa direcção. Depois a fábrica fechou, o rio secou e o pássaro do século acabou por entregar em casa das pessoas uma mensalidade que não era ganho nem rendimento. Era um fantasma que tinha a gratidão de toda a gente. Pois os ares do tempo não deixavam morrer de fome, ainda que alguns morressem, nas montanhas, de frio.
Não eram todos velhos, mas havia de comum entre eles a indiferença pelos prazeres tribais, pelas bebidas, pelos jogos estridentes. Alguns pintaram o arco-íris na capela porque supunham que os entusiasmaria sexualizarem um lugar assim, dançar com grandes efusões obscenas. Mas era pedir muito aos sentimentos. Já não havia fé para blasfémias. A capela mantinha o seu altar que serviu de balcão às cervejas cujo sabor antigo desgostava. Rapidamente se cansaram dela.» [De «Certas Raízes»]
Certas Raízes e outras obras de Hélia Correia estão disponíveis em https://www.relogiodagua.pt/autor/helia-correia/
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