A vitalidade narrativa de Tolstoi exprimiu-se em contos como “De Quanta Terra Precisa Um Homem?”, “Depois do Baile”, “O Diabo” e “O Padre Sérgio”. Afirmou-se também em novelas como a quase autobiográfica Os Cossacos, em A Morte de Ivan Iliitch e na Sonata de Kreutzer, escritas quando o moralista ameaçava já o narrador. A póstuma Hadji-Murat, admirada por Wittgenstein e H. Bloom, é um caso singular de criação tardia.
Mas foi na extensão de Guerra e Paz e Anna Karénina que Tolstoi realizou o seu projecto de retomar o fio perdido de uma épica em declínio, dialogando com Homero, alheio ao decurso dos séculos.
Li Guerra e Paz demasiado cedo e quando voltei a folheá-lo não reencontrei o fascínio de um desfile de personagens num fundo de guerra. Mas o que recordava impediu a limpidez de um primeiro olhar. E a estreita vida conjugal em que acabam Pierre e Natacha continuou a parecer-me uma rendição incondicional. Talvez por isso prefiro Anna Karénina, onde Tolstoi criou a mais perdurável das suas personagens.
Anna Karénina tem sido analisada pelos críticos mais atentos. Nabokov, a quem invejo a leitura no original, considera que tudo no carácter de Anna «é significativo e moral o que também se aplica ao seu amor». Para Steiner, o «método da sua escrita é polifónico» e «as harmonias principais têm uma terrível força e completude». Por sua vez, James Wood diz que «os carácteres de Tolstoi tem uma espécie de realidade diferente da dos outros romancistas, porque são ao mesmo tempo inevitáveis e previsíveis, universais e particulares».
A força narrativa de Tolstoi pode ser avaliada comparando Anna Karénina com Madame Bovary e o Primo Basílio, obras cujo trama é o adultério. Anna Karénina faz parecer estreito o magnífico romance de Flaubert e provinciana a Luísa de Eça.
Tolstoi escreveu as suas principais obras num período em que a Rússia oscilou entre a libertação dos servos (1861) e a revolução (1905) e que foi quase tão criativo como a Grécia de Péricles. Tinha uma compreensão dos ritmos profundos da vida, uma visão moral e dominava as técnicas da narrativa clássica. Foi isso que lhe permitiu transformar um caso de adultério na procura de sentido para a vida por parte de uma mulher que enfrentou deliberadamente a moral do seu tempo. Mas como é anunciado na epígrafe (uma citação de S. Paulo) «minha é a vingança e eu lhes darei a paga», Tolstoi acaba por condenar uma personagem que antes olhara com generosidade ou até com involuntária admiração. Entre os preconceitos do marido e a desatenção do amante, Anna é impelida para morte porque para Tolstoi o amor apenas carnal destrói em vez de criar.
Porém, ao suicidar-se, Anna vinga-se não apenas de Vronski como do próprio Tolstoi, tornando-se tão imortal como ele – se é que não é ela própria a assegurar-lhe a imortalidade.
Francisco Vale