Francisco
Vale
O
Nobel de Alice Munro causou perturbação entre os que consideram o conto um
género literário menor. Foi o caso de Inês Pedrosa (I. P.) em crónica no Sol
de 18 de Outubro.
Antes
de mais, uma declaração de interesses. A Relógio D'Água tem no catálogo dezenas
de livros de contos, entre os quais seis de Alice Munro, publicados quando não
eram propriamente êxitos de vendas. Não editamos géneros, mas livros — até há
pouco era um axioma editorial evitar teatro, poesia e contos.
Em
vez de assumir que se trata de uma opinião, de um gosto como o que leva a
preferir espargos a beterrabas, o azul ao amarelo ou ficção realista à
fantástica, I. P. procura justificar-se, passando de um juízo de valor a um
juízo de facto. Ao fazê-lo, diz coisas disparatadas.
«O
conto é, sem dúvida, uma delicada forma de arte, mas o trabalho do contista não
se compara à exigência arquitectónica implícita no trabalho de um bom
romancista», escreve. Daí a sua proposta
de criar um Nobel para o conto como se este não tivesse lugar na Literatura. E
numa involuntária referência às personagens de Tchékhov, I. P. diz mesmo que
«escrever muito bem pequenas histórias de vidas banais» não é «mesma coisa que
escrever A Ronda da Noite ou Anna Karénina».
O
conto tem origem nas tradições da mais remota Antiguidade. Em certos casos,
como o d’As Mil e Uma Noites,
pode mesmo considerar-se uma criação do tempo.
Mas
fiquemos apenas por um breve inventário do conto a partir do século xix. Entre os contistas, temos Tchékhov,
a neozelandesa Katherine Mansfield, Poe (que em dois contos criou o género
policial), Karen Blixen e Borges, que escreveu um conto sobre o mais famoso dos
romances, Dom Quixote, que se tornou quase tão famoso como ele
(para quê escrever romances quando se pode escrever um conto sobre um romance?,
disse em jeito blague). As breves narrativas de Isaac Babel e de
Chalamov foram durante muitos anos um testemunho quase solitário das
atrocidades do estalinismo. Conan Doyle criou uma personagem tão imortal como a
imortal Anna Karénina. Entre os mais recentes contistas temos Raymond Carver,
W. Trevor, Saunders e Lydia Davis. E para criar a figura do Narrador, W.
Benjamin não se inspirou em Proust, de quem foi tradutor, mas no contista russo
Leskov.
Obstinada
no erro, I. P. acrescenta que «os romancistas são também contistas, mas a
inversa não é verdadeira». Ora, Tchékhov escreveu Um Drama na Caça,
Maupassant Bel-Ami e Pierre et Jean, Karen Blixen, Out
of Africa, Truman Capote, A Sangue-Frio, Katherine Anne Porter, A
Nave dos Loucos, e Clarice Lispector, A Maçã no Escuro e A Paixão
segundo G. H. Outros contistas que escreveram excelentes romances foram
Flannery O'Connor, Eudora Welty, Edith Wharton, Pirandello, o próprio Kafka,
que é talvez um contista e nos deixou O Processo, e o mais recente Junot
Díaz. É pois demasiado longa a lista dos que, por falta de fôlego
arquitectónico, deveriam ter-se ficado por narrativas curtas.
O
conto é uma arte difícil. Em poucas páginas, tem um início, a criação de
personagens, o desenvolvimento de um enredo e um desfecho, o que exige
contenção criativa e um apurado domínio da escrita e dos seus ritmos. Falando
de arquitectura como metáfora, talvez se possa dizer que a Gare do Oriente de
Calatrava é um romance e a igreja em Marco de Canaveses de Siza Vieira, um
conto. Mas qualquer um deles é de uma arquitectura exigente.
Que
a própria Academia Sueca tenha ultrapassado o preconceito que o levou a fazer
de Borges o escritor que mais vezes deixou de receber o Nobel, só pode ser
considerado um sinal de evolução positiva.
Inês
Pedrosa acrescenta como argumento adicional que não pode ser justo o Prémio Nobel,
pois a Academia ignora os talentos que existem em línguas para ela
desconhecidas.
E,
pedindo desculpa pela franqueza, diz que Munro «não é melhor do que Lídia
Jorge, Luísa Costa Gomes ou Teolinda Gersão, antes pelo contrário».
São
certamente excelentes escritoras, gosto em particular de Lídia Jorge, mas
pessoalmente começaria a duvidar dos meus critérios se começasse a encontrar
entre os meus amigos escritores Kafkas, Prousts e Yourcenars. Mas talvez I. P.
tenha sido abençoada pelo destino.
Claro
que o Nobel da Literatura está longe de ser um prémio «justo». Os problemas
começam na dificuldade de avaliar a obra de um contemporâneo. Não por acaso foi
atribuído a algumas dezenas de autores que hoje só são recordados nos seus
países (Echegaray, Prudhomme, Mommsen, Rolland, Heidenstam, Pontoppidan e
Gjellerup, Björnson, Mistral, Eucken e Heyse, Spitteler, Benavente, etc.).
Outra
questão é que mesmo para os escritores traduzidos em anglo-americano, os
membros da Academia só têm acesso a uma tradução. Como é que Aquilino,
Agustina ou mesmo Pessoa poderiam ser por eles adequadamente lidos?
Além
disso, há os próprios estatutos da Fundação Nobel, que referem que as obras a
premiar devem ir no «sentido do idealismo». Foi essa falta de idealismo o
argumento para excluir Tolstoi do Nobel. E depois há ainda critérios políticos,
geográficos e culturais.
Claro
que poderia haver outros premiados em 2013 e, mesmo que a Academia quisesse
celebrar a literatura canadiana, teria também Margaret Atwood.
Em
«Não Tão Memoráveis», Javier Marías colocou de um lado da balança os Nobel
mais reconhecidos e do outro os melhores escritores que o não receberam, e o
fiel pende para estes últimos. O Nobel da Literatura é o mais prestigiado
prémio literário. Mas não é tão universal como pretende e muito menos sempre
justo.
Num
pensamento que pretende ser astucioso e é apenas lamentável, Inês Pedrosa
considera que o Nobel da Literatura foi mal atribuído, mas, do mal o menos, foi
a uma mulher. Alice Munro teria, porém, sido escolhida por não fazer «muita
sombra» aos «génios», ou seja, aos escritores homens, «que por aí andam». Munro
teria sido inconscientemente manipulada pelos homens e supomos que também pelas
cinco mulheres da Academia Sueca.
Jonathan
Franzen, um dos mais importantes romancistas vivos, escreveu há já alguns anos
que é um escândalo que Alice Munro ainda tenha recebido o Nobel da Literatura.
Como é evidente, estará conluiado com a Academia Sueca na escolha de uma mulher
que não lhe faça sombra. E que dizer de Margaret Atwood e A. S. Byatt que
saudaram a justeza do prémio?
Alice
Munro é membro do Reino de Redonda, de que Javier Marías é a cabeça coroada.
Todos os anos a nobreza do reino é convocada para premiar autores, escritores
ou cineastas de línguas não espanholas. Alice Munro é a duquesa de Ontário e
entre os seus pares estão Coetzee, Magris, Ian McEwan, Milan Kundera, Steiner
ou Umberto Eco.
Mas
Munro não precisa de ser a duquesa de Ontário de um reino imaginário. Recebeu
os mais prestigiados prémios do seu país e o Booker Prize em 2009. A sua
nobreza é partilhada com as personagens, muitas delas gente simples. E esse um
dos privilégios do conto.