«No capítulo XVII do Livro II dos Ensaios, «Da Presunção», Montaigne diz o seguinte: «Mas as almas belas são as almas universais, abertas e preparadas para tudo, se não instruídas, pelo menos, instruíveis: o que digo para acusar a minha; porquanto, seja por fraqueza seja por negligência (e o negligenciar o que está aos nossos pés, o que temos entre mãos, o que de mais perto concerne a prática da vida, é coisa bem longínqua do que tenho por bom), nenhuma há como a minha tão inepta e tão ignorante de muitas coisas vulgares e que não se podem ignorar sem vergonha.» Este trecho, com o seu movimento sinuoso e paradoxal, ilustra bem o estilo de Montaigne e o modo como ele frequentes vezes entrecruza o que exprime acerca de si mesmo com juízos de alcance ético e antropológico. O ideal que aqui enuncia, de uma alma caracterizada essencialmente pela pura disponibilidade, pela abertura plena à apreensão do real, e por um insaciável desejo de saber concomitante de uma atitude de humildade e suspeita perante o mesmo saber, embora, em tom autodepreciativo (o qual, de resto, não pode deixar de ser visto como uma inscrição a contrario na crítica da presunção e da filáucia levada por si a cabo neste capítulo), declare não o atingir, corresponde de alguma forma ao que — tendo em vista a sua obra, o itinerário da sua vida e o que nelas se revela — ele incarnou, coisa que, aliás, não é de espantar a respeito de quem, ao longo de toda a existência, sempre aplicou «todos os esforços a formar a [sua] vida», fazendo disso o seu «ofício e trabalho» (II, 37, 784a).» [Da Introdução]
Ensaios — Antologia, de Montaigne, com prefácio e tradução de Rui Bertrand Romão, está disponível em https://relogiodagua.pt/produto/ensaios-antologia-2/