24.6.09

Falar de Livros Que Não Lemos


Pierre Bayard escreveu um livro, Como Falar de Livros Que Não Lemos já traduzido em vinte línguas e que em França vendeu mais de 40 mil exemplares. Ainda não o li e não vou usar a autorização que o autor dá para mesmo assim falar dele. Recorro apenas às suas declarações num debate que teve com Umberto Eco na New York Public Library a 17 de Novembro de 2007 (pode ser consultado aqui) e que foi, em parte, reproduzido em Le Magazine Littéraire deste mês de Junho.
Bayard afirma que «o importante é que não haja etiquetas, “livros lidos” e “livros não lidos”. Considera-se, em geral, que uma fronteira os separa. Ora uma tal diferenciação não é sistematicamente útil. Muito francamente sou incapaz de dizer se percorri ou não vários livros de Hegel, Lacan e Freud…» E falando do seu filho, que se queixa dos processos de leitura no sistema escolar francês, Bayard diz que «lhe acontece ler um livro de que gosta e de que, no entanto, é incapaz de dar informações detalhadas porque sonhou, imaginou, parou para ver uma rapariga na rua… É isto a leitura»…
O exemplo não é dos mais actuais. Como se sabe, agora são as raparigas que lêem e os rapazes que passeiam… De qualquer modo, o livro de Bayard constata, e esse é o seu relativo mérito, tendências existentes. O problema é que transforma a necessidade em virtude.
Ninguém consegue ler, na íntegra, mais do que alguns milhares de livros ao longo da vida. Estamos mesmo numa época de cada vez menos «grandes leitores», embora aumente o número dos que lêem. Há cada vez mais livros de literatura, ciências humanas e hard science à disposição em livrarias e bibliotecas. E é evidente que nos vamos esquecendo do que lemos há algum tempo (o tema foi já abordado nos anos 80 por Patrick Süskind). Por outro lado, as sociedades ocidentais dispõem de uma diversificada «máquina» cultural em que jornalistas, críticos, professores «lêem» para os outros.
Daí que todos aqueles que se movimentam nos meios culturais falem, por vezes, de obras que não leram mas de que têm referências e de livros que deixaram incompletos ou que caíram no limbo de um relativo esquecimento. Não há nisso problema algum desde que as coisas fiquem esclarecidas.
Há noventa por cento de adolescentes norte-americanos que não conseguem ler sem um som musical em fundo. E os estudantes do secundário português que se preparam para as provas de exame lendo prontuários de vinte páginas de Os Lusíadas ou de Os Maias, não precisaram de Pierre Bayard para falarem, com mais ou menos desenvoltura, de romances que não leram.
Mas é significativo o êxito que o livro de Bayard teve em França. É um país em que nos últimos trinta anos as instituições subsidiaram massivamente a literatura e a arte, o que fragilizou a criação e permite a publicação de muitos livros que quase ninguém lê, mas que entram nos mecanismos culturais em termos de crítica e de recensão, o que acentua a disposição para falar de obras de que apenas se tem referências esparsas. Paris recusa-se mesmo a aceitar que deixou de ser o centro cultural que foi há um século, o que se revela no modo como a crítica saúda cada assomo de talento como um novo Montaigne, Proust ou Céline…
A questão essencial é, porém, outra. No debate travado na biblioteca nova-iorquina, Umberto Eco reconheceu que não leu alguns clássicos italianos, como Orlando Innamorato, embora seja capaz de falar dele durante vinte minutos e dissertar sobre as suas ligações com Ariosto. O autor de Obra Aberta, Lector in Fábula e Os Limites da Interpretação admitiu mesmo que saiu de um impasse na investigação para a tese de doutoramento quando interpretou mal uma citação do abade Vallet.
No entanto, Eco é claro no essencial. Para ele, «é preciso seleccionar na nossa vida os livros que devemos ler na íntegra e interpretar fielmente, sem inventar ou falsificar o que quer que seja». E embora defenda que se pode interpretar ou utilizar os livros e considere que se podem folhear as páginas de uma obra, sublinha que os livros devem ser respeitados «por e neles próprios».
É talvez esta a divergência essencial. Embora Bayard admita que «certos livros devem ser lidos da primeira à última página», a verdade é que celebra uma cultura de conhecimentos parciais e de fluxos discursivos não estruturados. Limita-se a teorizar com algum humor gaulês, a situação de vidas urbanas sem vagar nem silêncio, as leituras dispersas, que tendem a intensificar-se com certos usos da Net que dão a ilusão de se poder «recordar» o que quisermos com a ajuda do Google ou de outro motor de pesquisa. Ora como Eco sublinhou só é possível usar as referências, as leituras incompletas ou algo esquecidas, se tivermos interpretado através de uma leitura integral um certo número de obras de referência. De outro modo cai-se no risco de um desconstrucionismo social selvagem.
As pessoas melhor preparadas para a sociedade em que vivemos não são as que desenvolvam a arte de falar de livros que não leram, mas as que articulem as capacidades de leitura com o uso das novas tecnologias.
Além disso, Bayard, psicanalista de profissão (mesmo sem saber que livros de Freud «percorreu») e professor na Universidade de Paris-VIII, esquece os livros de ciências «duras» e sociais.
Ora como diz Steiner em Os Livros Que Não Escrevi, uma literacia actual inclui nos seus «elementos básicos» as matemáticas, a música, a arquitectura e a biogenética.
Há, de facto, uma grande diferença entre Escrever Sobre os Livros que Não Escrevemos e Falar dos Livros que Não Lemos.

Francisco Vale

Sem comentários:

Enviar um comentário