«Ainda que Maria Emília nunca o tenha entendido com clareza, foi aquele espelho que lhe abriu o destino. Até aí vivera meigamente, apascentando vacas e coçando a cabeça onde a gordura escurecia o nó loiro das tranças. Existira na bênção saudável e pesada que cobre as flores e os homens a quem o sol desperta e a noite faz horror.
Crescera devagar, sem que ninguém parecesse dar por isso. A mãe vivia um pouco enlouquecida entre as frutas, os porcos e as horas de mungir. Fora uma bela noiva, mas partos obsessivos, com muitos filhos mortos, haviam-na escavado, deixando à vista os ossos e as linhas dos nervos que lhe desciam pelo peito, rígidas.
Maria Emília fora a primeira dos três sobreviventes e, ao contrário do que pareceria natural, os pais nunca lhe haviam dedicado uma afeição gulosa. Esperavam furiosamente um filho macho que lhes veio a nascer, franzino e descorado, quando a Segunda Guerra devastava a Europa. Maria Emília e Laura, as duas raparigas, gozaram por um tempo desse desdém caseiro, uma quase indiferença que lhes escancarava a grande liberdade dos pinhais e dos rios.» [p. 23]
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