O catálogo da Relógio D’Água inclui onze obras de Dostoievski, entre elas os seus romances principais, Os Irmãos Karamázov, Os Demónios, O Idiota e Crime e Castigo. Recordações da Casa dos Mortos sairá ainda em Março e, até final do ano, Diários do Escritor.
Na segunda metade do século xx, os leitores portugueses conheceram os escritos de Dostoievski, mas sempre através de traduções francesas, num persistente trabalho de Maria Franco. Hoje podem ler a maioria das suas obras em traduções do russo de António Pescada e Nina Guerra e Filipe Guerra, ambas de qualidade, mas diversas nos métodos e resultados.
As reedições têm sido frequentes, o que mostra que Dostoievski continua a ter leitores, muitos deles jovens, sendo um clássico no sentido em que é redescoberto por sucessivas gerações. Mas nunca foi um autor consensual. Recebeu críticas negativas de escritores como Tchékhov e Nabokov. O próprio Tolstoi tinha com ele uma relação ambígua, embora, na casa do chefe da estação de Astapovo, onde se refugiou para morrer, tivesse consigo, ao que se diz, Os Irmãos Karamázov (e os Ensaios de Montaigne).
Ao longo dos anos, foi-se tornando um dos meus autores preferidos. Fiz na adolescência uma leitura demasiado precoce de Os Irmãos Karamázov, que me levou a pô-lo de lado por uma década, repelido pelo seu misticismo algo alucinado, tendo-me parecido então um romancista que amava “mais o cristianismo que a verdade”, para usar a expressão de Coleridge. Nessa época, fui incapaz de ver que o misticismo em escritores como Dostoievski pode ser uma via para explorar as profundidades do ser humano, como mostra o ensaio que Freud lhe dedicou. Regressei a Dostoievski mais tarde através de Crime e Castigo, que, passados cento e cinquenta anos, permanece a melhor história de um assassino, uma obra que, através de personagens como o egocêntrico Raskólnikov, a abnegada Sónia e Svidrigálov, altera a consciência dos leitores, mostrando-nos que o egoísmo e a generosidade, o bem e o mal se entrecruzam na disputa do incerto coração humano.
A actualidade de Dostoievski tem várias explicações. Cento e quarenta anos após o seu enterro no cemitério do Mosteiro Alexandre Nevski em São Petersburgo, afirma-se como um dos mais importantes escritores dramáticos desde Shakespeare (sabe-se que vários dos seus romances e novelas se desenvolveram a partir de esboços teatrais). Atrai pela intensidade das situações, as personagens em momentos de crise, o imprevisto das acções e os caminhos que abriu para a compreensão de aspectos subterrâneos e transcendentes da vida.
O carácter visionário da sua obra é visível em Os Demónios, onde antecipa o horror a que levam as tentativas de impor a igualdade social através da violência sectária, e também em Os Irmãos Karamázov, onde surge a figura do Grande Inquisidor, o mal que se oculta sob a aparência do bem, em que se defendem teorias em que se não acredita para manipular seguidores crédulos. O Grande Inquisidor afirmava que os homens apenas serão felizes quando imperar na terra uma ordem regulada por uma autoridade sem contestação, pois «só assim será possível dar aos homens a tranquila e humilde felicidade das criaturas débeis». A Alemanha nazi, a URSS e os actuais regimes chinês e norte-coreano, em que uma parte da população foi levada a trocar a liberdade pela segurança, são uma ilustração da dimensão visionária da personagem do Grande Inquisidor.
Muitos dos seus livros, de O Jogador à primeira parte de O Idiota e à maior parte de Os Irmãos Karamázov, concentram-se em breves períodos de tempo. Alguns foram escritos em poucas semanas por um Dostoievski em quase estado de transe, impelido pelo seu desejo de criação de uma grande obra.
Em tudo isso parecem ter sido importantes as experiências-limite que atravessou, a começar por aquela que, aos vinte e oito anos, o levou à prisão, acusado de actividades subversivas, e a enfrentar um pelotão de fuzilamento, cuja ordem para disparar só foi cancelada deliberadamente no último instante. Seguiram-se anos de trabalhos forçados siberianos, onde Dostoievski conheceu presos comuns e marginais, que haveria de resgatar como personagens de drama, um cortejo de humilhados que se arrastam pelas ruelas sombrias e pelos sótãos das cidades russas. Foi também nesses anos que se tornou um conservador radical e devoto da Igreja Ortodoxa russa, o que não chegou para domar o que havia de subversivo e até de demoníaco na sua escrita.
Francisco Vale
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