29.5.20

Os Autores Respondem: Hélia Correia (cont.)


«Uma crise não muda as civilizações»

— Pensa que a actual epidemia vai alterar as relações individuais e suscitar novos temas ensaísticos e literários?

«Uma crise não muda as civilizações. O peso da inércia é superior. Só muito sangue e muita turbação provocam a mudança absoluta. E, ainda assim, a matéria social, o edifício construído há milhares de anos volta a impor a sua forma, a ordenar-se segundo os velhos cânones. As novidades, se provêm da ganância, que é muito inteligente, não são novas. São apenas mais vistosas. A globalização repete o sonho do domínio imperial sob um certo aparato de comércio. As tecnologias deram subtileza a uma escravidão que não era subtil.
A pandemia fez estremecer, mostrou um pouco os bons recursos do progresso, mostrou também aquilo que já se sabe, que antes do mais está a sobrevivência do animal humano com as crias. Vimos açambarcar, mas isso foi só um primeiro impulso preventivo. Pois veremos matar, se necessário. E, se for necessário, mataremos. No meio disto, há lugar para heroísmos, discretos, no segredo hospitalar. Os governantes pedem à ciência licença para salvar a economia e a ciência não sabe o que dizer.
E quanto à literatura: sofreremos uma invasão de escritos radicados nas experiências pessoais, mal transformadas em sequências de capítulos. São os já conhecidos relatos “da vidinha” mergulhados agora em nata filosófica. Mas quanto à literatura: sei de um nome capaz de deitar mão de imediato à complexidade do momento e fazer uma obra grandiosa. Não é o Houellebecq, de quem não gosto, nem o Ian McEwan de quem gosto às vezes.  Não é McCarthy, de quem gosto muito. É português e chama-se Gonçalo M. Tavares.
Mais tarde, o pó assentará e então teremos romances e ensaios e poemas que abordarão o assunto com perícia, bom gosto, inteligência, perfeição. Demos-lhes tempo, se acaso tempo houver.»

Adoecer e outras obras de Hélia Correia estão disponíveis em: https://relogiodagua.pt/autor/helia-correia/


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