Vamos publicar nos próximos dias as respostas dadas pela escritora Hélia Correia às três perguntas que fizemos a alguns dos autores que editamos.
«Andam uns ares de fim de tempo»
— Que leituras está a fazer? São diferentes das habituais?
«Bem podia eu fazer uma lista de livros que me deixasse aqui bem-vista: mentiria. Faria como alguém que convida para casa e depois dá indicações de modo a que o suposto visitante se extravie. Um livro a ler é uma intimidade. A lista publicada está na sala. A leitura que aguarda está no quarto. Eu sempre forneci nomes de livros, porque não me importava de mentir. Mas, hoje, já não acho graça a isso. Andam uns ares de fim de tempo por aqui e claro que se impõe a rectidão. Não me parece que os festins da peste, desesperados, belos e insensatos, sejam de novo convocados. Somos gente já científica e higienizada. O saber deve dar-nos sisudez. Por isso, falarei com honestidade, com a verdade dos solenes dias: eu não leio quase nada. Um pouco de Huysmans em boas traduções. Até isto é diferente. Não costumo ler traduções das línguas que conheço.
Para compensar a falta que me faz a presença do Eduardo Lourenço, do José Gil e do João Barrento, passo pelos livros deles, fragmentando-os. Não equivale a estar com eles, mas consola.
Ando, pois, a ler pouco. De repente, a quadrícula das horas, dos dias, das semanas distorceu-se. O equilíbrio entre os trabalhos da sobrevivência e as grandes liberdades do espírito, entre as pequenas raivas e os grandes sentimentos, desfez-se. E tacteamos no ar escuro.
Respiramos, cheiramos, tocamos e pisamos a matéria viscosa dos miasmas. Requer-se o absoluto isolamento, estamos sem rosto e usamos uma segunda pele de plástico, sem poros. Toda a nossa atenção desceu, tornou-se prática, conta os dois metros, metro e meio, de distância. O agente da morte é tão pequeno, indetectável, tão sem culpa, que não nos dá pretexto para recriminações, não nos deixa acusar judeus ou bruxas.
Os livros estão cheios de acções e consequências, de acasos trágicos, de arrependimentos, de moribundos com as suas maldições. Estão cheios de grandezas e de malevolência. Nesta realidade não há nada. Não há cenários e não há palavras. Não pude visitar a Maria de Sousa, nem mandar-lhe um poema, nem falar-lhe de música. Tão-pouco pude revoltar-me, pois não há um desejo de ferir, não há tiranos. Ela sabia. Antes de adoecer, escreveu-me: "O vírus não é um inimigo. Ninguém aloja em casa um inimigo."
O livro a ler, a existir, seria feito só com as negativas: ninguém, não. Nesse livro, nem trevas haveria.
Posso evocar os meus três livros sobre a peste. Os dos meus três autores, Sófocles, Defoe, Artaud. Dispenso os outros. Artaud sabia tudo, sabia o que os humanos não costumam saber. O Diário de Defoe é escrito como um testemunho fidelíssimo e dado ao pormenor. Porém, sabemos que ele era muito novo quando a peste de Londres fez a sua terrível "visitation" e que no seu relato se organizam as memórias de um tio. Trata-se, assim, de uma obra de ficção tão saturada de real que nos sujamos, nos nauseamos ao passar junto a cadáveres que havia já cinquenta anos lá não estavam. E sempre, sempre, Sófocles. É a peste o motor da tragédia do Rei Édipo. É a peste que leva à arrogância e, por isso, ao desastre. Foi a peste, contemporânea da escritura desse texto, que conduziu Atenas à derrota e matou Péricles e Aspasia e os melhores de um pequeno universo irrepetível. Os belíssimos estásimos do coro em Édipo aliam o lamento e a lição. Ambas as coisas nos são estranhas hoje.»
«Andam uns ares de fim de tempo»
— Que leituras está a fazer? São diferentes das habituais?
«Bem podia eu fazer uma lista de livros que me deixasse aqui bem-vista: mentiria. Faria como alguém que convida para casa e depois dá indicações de modo a que o suposto visitante se extravie. Um livro a ler é uma intimidade. A lista publicada está na sala. A leitura que aguarda está no quarto. Eu sempre forneci nomes de livros, porque não me importava de mentir. Mas, hoje, já não acho graça a isso. Andam uns ares de fim de tempo por aqui e claro que se impõe a rectidão. Não me parece que os festins da peste, desesperados, belos e insensatos, sejam de novo convocados. Somos gente já científica e higienizada. O saber deve dar-nos sisudez. Por isso, falarei com honestidade, com a verdade dos solenes dias: eu não leio quase nada. Um pouco de Huysmans em boas traduções. Até isto é diferente. Não costumo ler traduções das línguas que conheço.
Para compensar a falta que me faz a presença do Eduardo Lourenço, do José Gil e do João Barrento, passo pelos livros deles, fragmentando-os. Não equivale a estar com eles, mas consola.
Ando, pois, a ler pouco. De repente, a quadrícula das horas, dos dias, das semanas distorceu-se. O equilíbrio entre os trabalhos da sobrevivência e as grandes liberdades do espírito, entre as pequenas raivas e os grandes sentimentos, desfez-se. E tacteamos no ar escuro.
Respiramos, cheiramos, tocamos e pisamos a matéria viscosa dos miasmas. Requer-se o absoluto isolamento, estamos sem rosto e usamos uma segunda pele de plástico, sem poros. Toda a nossa atenção desceu, tornou-se prática, conta os dois metros, metro e meio, de distância. O agente da morte é tão pequeno, indetectável, tão sem culpa, que não nos dá pretexto para recriminações, não nos deixa acusar judeus ou bruxas.
Os livros estão cheios de acções e consequências, de acasos trágicos, de arrependimentos, de moribundos com as suas maldições. Estão cheios de grandezas e de malevolência. Nesta realidade não há nada. Não há cenários e não há palavras. Não pude visitar a Maria de Sousa, nem mandar-lhe um poema, nem falar-lhe de música. Tão-pouco pude revoltar-me, pois não há um desejo de ferir, não há tiranos. Ela sabia. Antes de adoecer, escreveu-me: "O vírus não é um inimigo. Ninguém aloja em casa um inimigo."
O livro a ler, a existir, seria feito só com as negativas: ninguém, não. Nesse livro, nem trevas haveria.
Posso evocar os meus três livros sobre a peste. Os dos meus três autores, Sófocles, Defoe, Artaud. Dispenso os outros. Artaud sabia tudo, sabia o que os humanos não costumam saber. O Diário de Defoe é escrito como um testemunho fidelíssimo e dado ao pormenor. Porém, sabemos que ele era muito novo quando a peste de Londres fez a sua terrível "visitation" e que no seu relato se organizam as memórias de um tio. Trata-se, assim, de uma obra de ficção tão saturada de real que nos sujamos, nos nauseamos ao passar junto a cadáveres que havia já cinquenta anos lá não estavam. E sempre, sempre, Sófocles. É a peste o motor da tragédia do Rei Édipo. É a peste que leva à arrogância e, por isso, ao desastre. Foi a peste, contemporânea da escritura desse texto, que conduziu Atenas à derrota e matou Péricles e Aspasia e os melhores de um pequeno universo irrepetível. Os belíssimos estásimos do coro em Édipo aliam o lamento e a lição. Ambas as coisas nos são estranhas hoje.»
Um Bailarino na Batalha e outras obras de Hélia Correia estão disponíveis em: https://relogiodagua.pt/autor/helia-correia/
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