1.6.20

Os Autores Respondem: Hélia Correia (cont.)


«Alguém se oferecerá para pensar por nós»

— Que consequências ecológicas e políticas poderá ter a pandemia?

«Quanto a consequências, a alterações da vida, não as vejo senão à superfície. Desconfiança do vizinho, conversão aos modos de saudar mais frio dos nórdicos, mais respeitoso dos orientais. Máscaras protectoras que estão já a ser alvo de investimento estético, isto é, lucrativo e narcisista. Regressará, bem activado, o consumismo, essa loucura da aquisição que, como a bulimia, engole, e deita fora, e ganha espaço para de novo engolir, num banquete de vómito romano. Manter-se-ão os escravos no trabalho em estreitas galerias: gente miúda que ocupa pouco espaço, fabricando, em extremo desconforto, o conforto que envolve as nossas vidas.
Passado o choque inicial, aliviados os temores e os pensamentos sobre os ditos temores, feito algum luto — ouvi até dizer que o vírus é gentil porque mata os que estavam anteriormente mortos, os velhos, frios, sem carne e sem assunto —, voltará o frenesim. Esse neurótico movimento de viajantes, essa deslocação alucinada de um lugar sem interesse para outro lugar desinteressante – aqui parafraseio Matthew Arnold; estes turistas que não sabem o que é turismo e comem, compram, amontoam e sujam e regressam às cabines e aos hotéis iguais em todo o lado; essas hordas de gentes que se vêem no lugar e não vêem o lugar, aumentarão de novo a poluição e calarão os animais e a paisagem para quem estes dias de peste foram tréguas.
Dir-se-á que não tenho os humanos em boa conta. Creio que os humanos são criaturas magníficas — mas fracas. Quanto mais fácil o viver, mais fracos são. Nós, os ocidentais, estamos do lado da terra em que há os mimos e os mimos envenenam o carácter. Não tarda muito, alguém virá exigir músculo, o músculo que faz erguer o braço e bater com o tacão da bota no desfile. Alguém se oferecerá para pensar por nós, escolher por nós, enfim, mimar-nos mais. Habituados como estamos à protecção, deixar-nos-emos conduzir como crianças. Esse é o toque da felicidade: é o toque da paralisação.
Nestes meses de peste não avistei sinais de evoluções bondosas. Pelo contrário, o ódio ao outro esteve intenso. O trabalho social da polidez perdeu subitamente o seu efeito. E as doces leis morais, que se supõe estarem profundamente enraizadas, foram muito depressa arrancadas do seu solo como as árvores sem sustentação. Houve familiares repudiados. Houve gatos e cães postos na rua.
As pessoas passavam por mim e o olhar delas só revelava determinação. Iam sobreviver, ainda que para isso tivessem de manter-se inteiramente sós. Eu, que sou normalmente ensimesmada, comecei a dizer «Bom dia» a toda a gente para que se acendesse alguma luz naqueles rostos que o medo envelhecera. Mas raramente obtive uma resposta.
Falando em luz, eu tenho sempre de reserva algum texto de Maria Gabriela Llansol. Deixo este excerto: “Entrou então no caminho, com eles, uma grande tristeza, um grande medo, um grande ódio. Olhando-se nos olhos, a luz íntima dos olhos fugia e a guerra sanguinolenta dos grandes campos de batalha manifestava-se nas palavras que proferiam, ou quase não proferiam”.»

O Separar das Águas e Outras Novelas e outras obras de Hélia Correia estão disponíveis em: https://relogiodagua.pt/autor/helia-correia/



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