12.10.17

Sobre Flannery O'Connor





«A literatura de Flannery O’Connor visa desestabilizar a respeitável audiência moderna que pensa que Deus está morto.
Os grandes mestres da fé podem ser completamente inesperados. Pense-se em Flannery O’Connor, que muitos têm como um dos nomes fundamentais da literatura contemporânea, mas que se espantariam que dela se dissesse o que também é indiscutível: que foi uma das grandes vozes espirituais do século XX. Em português estão editados os seus romances e contos, e apenas um pequeno caderno espiritual intitulado “Um Diário de Preces”. Faz falta a publicação dos seus ensaios e do volumoso conjunto de cartas, para termos uma visão unitária do seu projeto. Esses textos demonstram como e porquê Flannery explicou de si mesma: “Leio imensa teologia, porque isso torna as minhas páginas mais audazes.” De facto, ela recenseou, ao longo dos anos, larguíssimas dezenas de livros de teologia, de Karl Barth a Romano Guardini, de Yves Congar a Henri Délaniou ou a Maritain, dialogando com o seu pensamento. Definiu-se sempre como uma “tomista rural”, que precisava de ler Tomás de Aquino todos os dias vinte minutos antes de ir para a cama. Numa carta de 1955, ela divertia o seu correspondente imitando desta maneira o estilo da “Summa Theologica”_ “Se a minha mãe viesse ter comigo durante a leitura e pedisse, ‘Apaga a luz. É tarde’, eu, como o dedo levantado e expressão beatífica, replicaria: ‘A luz sendo eterna e ilimitada não pode ser apagada. Fecha tu os olhos.’
Mas de beatífica, no sentido trivial, O’Connor tinha pouco.
(…)
Ela desdenhava a linguagem piedosa e a obsessão do moralismo causava-lhe verdadeira repulsa. A uma leitora católica que lhe escreveu manifestando o desagrado pela falta de elevação dos seus contos macabros, ela respondeu: “Se você tivesse o coração no sítio certo, os meus contos tê-la-iam elevado.”
Interessava a Flannery O’Connor ampliar a autoconsciência do leitor, mesmo que fosse preciso dinamitar os lugares-comuns onde este se instala e arrancá-lo violentamente das suas falsas seguranças, pois só desse modo poderia levá-lo a uma abertura à experiência religiosa. As suas histórias, que muitos consideravam (e ainda consideram) brutais e duras, abordam a natureza conflitual do encontro com a Graça, em personagens que não parecem dispostas a acolhê-la.»
[José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 6/10/17]

De Flannery O’Connor a Relógio D’Água publicou Um Diário de Preces, O Céu É dos Violentos, Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias e Tudo O Que Sobe Tem de Convergir.

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