A forma de viajar que se está a
tornar mais comum é a de “viajar sem ver”, para usar a expressão de Andrés
Neuman.
Milhares de turistas desembarcam de
paquetes, aviões e autocarros em cidades como Lisboa, fazem percursos de várias
horas ou permanecem alguns dias e registam imagens que colocam nas redes
sociais ou levam consigo. Partem sem quase conhecer ninguém nem ver para lá das
aparências.
A parte antiga das cidades tende a
uniformizar-se, desaparecem muitas das formas de vida e comércio que as
tornavam diferentes e foram no passado uma das principais razões para viajar.
Os centros de Veneza, Berlim, Praga, Roma, Lisboa, Londres ou Paris são hoje
esplanadas do mundo.
Claro que há os que seguem fielmente
os Guias de Viagem e têm uma ideia da história e da importância dos locais que
visitam. Mas acabam por se acotovelar em multidão para espreitar a inacabada
Sagrada Família em Barcelona, a Torre de Belém, os dourados do Taj Mahal, a
Estátua da Liberdade em Nova Iorque ou os Guerreiros de terracota de Xian. E
partem com a frustração de não terem visitado outros locais que os guias mais
ou menos Michelin consideram imperdíveis.
Hoje já não são possíveis, pelo menos
no nosso planeta, viagens de descoberta e conhecimento de que foram exemplos as
de Alexandre Rodrigues Ferreira, Humboldt, Darwin, Alfred Wallace e Pedro
António de Andrade (que nos deixaram obras científicas como Diário da Viagem
Filosófica, A Viagem do Beagle ou Cosmos). Nem sequer são
prováveis viagens tão perigosas como as narradas por Fernão Mendes Pinto, Alexandra
David-Néel, Jack London, Annemarie Schwarzenbach, Freya Stark, Edith Wharton e
Robert Byron.
Mas é possível evitar que a viagem se
torne “uma travessia das aparências”.
E é em contracorrente às formas de
“viajar sem ver” que a Relógio D’Água relança agora a sua colecção de Viagens
com títulos como As Ilhas Gregas, de Lawrence Durrell, Homenagem a
Barcelona, de Colm Tóibín, Roma, de Gógol, Paris França, de
Gertrude Stein, e Inverno no Próximo Oriente, de Annemarie
Schwarzenbach.
Estes livros valem por si, permitem
voos de imaginação sem esperas de aeroporto.
É uma “viagem”, a descrição que
Durrell faz da vida quotidiana nas ilhas de Corfu, Samos, Creta ou Naxos, com a
sua paisagem impregnada de história e mitos (embora não nos possa dar o calor,
o cheiro, as cores, as vozes incompreensíveis e os acasos de uma visita
pessoal).
E depois de lermos Homenagem a
Barcelona nunca mais a capital da Catalunha nos parecerá a mesma.
Há quem prefira viajar com o olhar
desprevenido, sabendo pouco dos locais que visita com uma espécie de ignorância
deliberada. Fica-se assim mais disponível para o assombro de uma primeira visão
do Machu Picchu, da terra vermelha em África, dos fiordes nórdicos ou da
esfuziante vida das Ramblas, numa espécie de avidez inicial. E afinal perder-se
numa cidade é, como dizia Walter Benjamin, uma arte. Mas, mesmo nestes casos, a
posterior leitura de um livro permite revisitar esses locais através de um
outro olhar e algum tempo depois as impressões recebidas e as que lemos
confundem-se na memória.
Mas o melhor ainda é viajar para
locais que previamente se conhecem, que se “leram” antes ou que se vão
conhecendo à medida que para lá vamos.
A escolha dos meios de transporte é
uma importante decisão do viajante, não sendo por acaso que ocupavam só por si
um lugar essencial na narrativa das
viagens até finais do século xix,
como podemos ver em Viagens com Uma Burra pelas Cevenas, de R. L.
Stevenson.
O ritmo é essencial, sendo diferente
a viagem em que mal se tem tempo para registar uma imagem fotográfica de um
vendedor de tapetes num souk de Marraquexe e aquela em que se pode aceitar um
chá e negociar com o habitual faz-de-conta que acreditamos em todas as
magnificências que nos exibem.
Mas, até quando não viajamos com
vagares de caminhante, é possível recuperar muito do que se perde lendo o livro
certo. Pode assim combinar-se o espanto real de uma primeira vez com a
nostalgia do “já visto”, “ver” as ruas de Paris, sabendo que foi naquele restaurante
que Joyce bebia vinho branco e naquela praça que se tomou a Bastilha, amanhecer
numa ilha grega atentos ao rumor dos mitos que se retiram, ou visitar Els
Quatre Gats de Barcelona, sabendo que ali se sentaram e expuseram Picasso e
Miró.
Publicado, em versão ligeiramente diferente, no Jornal de Letras,
14 de Setembro de 2016.
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