Francisco Vale
«Não quero ler mais ficção, escrever mais ficção, nem mesmo falar mais de
ficção. Dediquei a minha vida ao romance: estudei-o, ensinei-o, escrevi-o e
li-o. Em detrimento de praticamente tudo mais. Basta! (…) É-me impossível
pensar em voltar à escrita.» Em Les Inrockuptibles.
Estas afirmações de Philip Roth foram confirmadas em entrevista ao The
New York Times e causaram alvoroço.
Muñoz Molina afirmou que não acredita que um romancista deixe
deliberadamente de escrever. E não faltaram os que em tom jocoso condescenderam
em que o autor de A Conspiração contra a América tem todo o
direito de passar os dias diante do televisor.
Nada indica que as declarações de Roth se destinem a chamar a atenção sobre
uma obra que corre o risco de ser esquecida, como sucede com as falsas
despedidas das divas, cuja voz esmorece.
Roth tem agora 79 anos. Os seus melhores livros, Pastoral Americana, Casei
com Um Comunista e, sobretudo, o Teatro de Sabbath, foram
publicados nos anos noventa do século passado. A sua última grande obra, A
Mancha Humana, é de 2000. Os livros mais recentes abundam em descrições de
doenças e imagens de cerimónias fúnebres judaicas. Com excepção de O Animal
Moribundo, revelam cansaço nos temas e incorrem em repetições. O próprio
sexo deixou de ter a urgência subversiva que possuía em O Complexo de
Portnoy. Os fantasmas tornaram-se previsíveis, o virtuosismo técnico
substituindo a originalidade. «Envelhecer não é uma luta, mas um massacre»,
como ele próprio escreveu.
A verdade, porém, é que mesmo nos seus melhores tempos Philip Roth publicou
obras menores como Our Gang, The Breast e Deception.
Mas depois foi capaz de escrever o Teatro de Sabbath (1995),
que James Wood saudou como a obra-prima que realmente é. E Nemésis,
acabado de sair, é superior a alguns dos seus outros livros.
As razões literárias para o abandono da ficção parecem assim faltar.
E, além disso, não será o impulso de escrever incontrolável? Um romancista
não é como um jogador de futebol que a dada altura esbarra em dados objectivos,
os passes falhados, a incapacidade de aguentar os noventa minutos, assobios em
vez de aplausos. Não dependerá um escritor de uma vontade que o transcende,
daquilo a que os antigos chamavam musas, Freud, inconsciente, e outros, a
inspiração?
É certo haver casos de abandono voluntário da escrita, até precoces, como o
de Rimbaud. Muitos criadores escaparam, porém, ao veredicto da idade. Manoel de
Oliveira continua a filmar com mais de cem anos e Clint Eastwood promete
imitá-lo. Picasso mantinha uma vitalidade de fauno aos 90 anos. Foi um Saramago
já fragilizado pela doença que aos 87 anos publicou Caim. Dalton
Trevisan continua a recriar o erotismo pícaro brasileiro aos 88 anos. Um Oscar
Niemeyer, prestes a fazer 104 anos, discutia no quarto do hospital os seus
projectos com engenheiros e arquitectos. Cardoso Pires ficcionou o seu processo
de morte em De Profundis — Valsa Lenta. São autores que morrem
com a armadura posta, que caem no seu posto de combate como G. T. Ballester
disse de Fernando Assis Pacheco, ao saber que este falecera diante de uma
livraria.
Mas é possível que Roth não tenha essa têmpera e seja preferível seguir
neste caso a máxima de Oscar Wilde para quem só as «pessoas superficiais não
julgam pelas aparências». Talvez em Roth tenha despertado o rancor pela ficção,
algo semelhante ao odium professionis que acomete os monges
após décadas de vida claustral, uma súbita aversão à disciplina que conformou
as suas vidas (James Wood designou certa vez Roth por «monge fornicador»).
Que há de mais natural que um homem da sua idade esteja cansado de escrever
e até de ler ficção? Que queira escapar à maldição de nunca ter vivido a vida
como ela é para quase todos? Que já não queira ver as pessoas com a distância e
o desdobramento do observador que em tudo espreita a matéria das suas ficções?
Como escreveu Ortega, «a percepção da realidade vivida e a percepção artística
são, em princípio, incompatíveis». Uma súbita aversão à escrita ficcional pode
ocorrer mesmo num autor de cultura judaica com uma particular relação com o
texto, não sendo necessário insistir nos sinais de niilismo que povoam a obra
de Roth.
Qualquer passeante da Quinta Avenida poderá encontrar uma destas tardes um
despreocupado Roth, a caminho do cinema, de um bar ou de parte alguma.
Já agora um conselho, pois todo o cuidado é pouco com o assalto das musas:
que não escute as conversas de quem passa, não responda ao sorriso da arrumadora
do cinema, não brinque com os esquilos do Central Park e evite até as doenças.
E claro, em caso de insónia, não deixe que a memória tacteie no passado — vá
para a sala e prepare uma bebida ao som de uma música qualquer.
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