17.10.24

De O Anjo Camponês, de Rui Nunes

 «A mão deformada, não se pode dizer que pouse. Na colcha, nos joelhos, ou. Onde quer que seja, essa mão já não coincide: um vazio entre ela e a mesa acentua o inchaço das articulações. Num movimento descontrolado, tenta agarrar o copo: a água espalha‑se no tampo de mármore. E a mão recua para o queixo, tapa a boca, quase, porque os dedos não se juntam, as articulações não deixam, há uma fresta entre o indicador e o médio, por onde se vêem os lábios entreabertos, os dentes na irregularidade do seu desengonço. A este corpo sem jeito chamavam‑lhe o quê?: o filho de Hilde? o tartamudo? o tonto, coitado? Ou gritavam‑lhe: vem cá, fecha‑me essa boca, limpa o cuspo dos lábios, vai buscar lenha: nem a intimidade de um insulto ou de um riso. De falta de nome em falta de nome, até à falta. Nítida como uma soletração. Hoje, é somente um corpo, de ninguém, que ninguém.» [pp. 11-12]


O Anjo Camponês e outras obras de Rui Nunes estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/rui-nunes/

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