«Numa das raras entrevistas dadas por Cormac McCarthy perguntaram-lhe se ele conseguia explicar como potenciar uma ideia durante o acto de escrita, já que ele sempre descreveu esse acto como inconsciente. McCarthy respondeu: “É como o jazz. Eles criam enquanto tocam, e talvez só aqueles que o sabem fazer possam compreender isso.” Esse sentido de improviso, de qualquer coisa selvagem que se vai formando e da qual tentamos apanhar o sentido que parece quase sempre escapar, talvez nunca tenha sido tão evidente num livro de Cormac McCarthy como neste O Passageiro, romance publicado pouco depois de o escritor completar 89 anos.
É um objecto esquivo, meio indomável. As críticas publicadas nos jornais anglo-saxónicos, os primeiros a terem acesso ao romance que faz parelha com Stella Maris — a sair em Portugal no próximo mês de Dezembro — têm abusado de adjectivos na tentativa de ajudar a arrumar ou identificar o livro enquanto produto narrativo: estranho, sombrio, caótico, obsessivo, alucinante, demencial, imperceptível. E, ainda nesse sentido — o de auxiliar de enquadramento —, têm-no comparado no estilo ou tom a nomes tão distintos como os de Thomas Pynchon, Don DeLillo, James Ellroy, William Faulkner, Philip Roth e até, de uma maneira um pouco depreciativa, a H. P. Lovecraft. Todos escritos de uma cerca América, todos às voltas com a linguagem enquanto acerto e desacerto na tarefa de tentar entender a natureza humana num determinado tempo e lugar. Mas o termo “estranho” é de todos o mais repetido, para o bem ou para o mal, quando diante do inusitado que é O Passageiro.
É um livro estranho. E muita dessa estranheza talvez resulte do bastante que se especulou e esperou desde que a editora norte-americana de Cormac McCarthy anunciou em Março deste ano que ia publicar ainda em 2022 dois novos livros do autor de A Estrada. Como seriam estes últimos Cormac McCarthy? A fasquia estava muito alta e o silêncio foi longo. Passavam-se nada mais do que dezasseis anos desde que saíra precisamente A Estrada. Publicado em 2006 e vencedor do Pulitzer em 2007, era o livro do apocalipse, uma grande obra de um dos maiores escritores não apenas de língua inglesa; alguém no Olimpo dos escritores mundiais, há muito nobelizável, que construiu para si mesmo uma aura mítica ao tornar-se cada vez mais recluso, avesso a entrevistas ou a palestras literárias, avesso desde sempre a falar da sua obra.» [Isabel Lucas, Público, ípsilon, 18/11/2022: https://www.publico.pt/2022/11/18/culturaipsilon/noticia/perdicao-selvagem-cormac-mccarthy-2027879]
O Passageiro (trad. Paulo Faria) e as obras de Cormac McCarthy editadas pela Relógio D’Água estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/cormac-mccarthy/
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