Agustina Bessa-Luís nasceu há cem anos em Vila Meã às seis horas da tarde de um domingo chuvoso. Escreveu mais tarde que, nos países nórdicos, se diz que quem nasce ao domingo será capaz de prever o futuro, mas que tal dom não lhe agradaria, pois «adivinhar não é saber», perdendo-se além disso «a fantasia da curiosidade».
Agustina cedo se deslocou para o Douro passando a viver na casa do seu avô Lourenço, que apreciava Dostoievski como haveria de lhe acontecer a ela.
O que mais a impressionou na infância foram as estantes cheias de livros que havia em casa desses seus avós durienses.
Aprendeu a ler aos quatro anos e a sua professora primária afirmou que seria capaz de fazer dela «alguma coisa».
Leu muito cedo As Mil e Uma Noites, aventuras de Sherlock Holmes e Os Três Mosqueteiros. Entre os romances que mais marcaram a sua adolescência conta-se Monte dos Vendavais de Emily Brontë.
Escreveu em O Chapéu das Fitas a Voar que a primeira revelação que teve da sua vocação literária foi através de um filme de que só leu o argumento e nunca chegou a ver.
Aos dezanove anos «descobriu» no Porto os romances norte-americanos.
Foi uma autora precoce escrevendo na adolescência Ídolo de Barro e Água da Contradição. Publicou Mundo Fechado quando tinha apenas vinte e seis anos.
As comemorações
As comemorações do centenário do nascimento de Agustina vão alargar e aprofundar o conhecimento da sua obra. Estão em curso reedições dos seus romances, debates, intervenções na rádio e televisão, iniciativas relacionadas com música e artes plásticas e novas traduções.
Agustina foi certamente a maior romancista portuguesa de sempre e um dos três principais escritores do século xx português. Desde a publicação de A Sibila (1954), a sua obra constituiu-se como um corpo estranho na literatura portuguesa, dominada então pelo neorrealismo e na poesia e pintura também pelo surrealismo. No entanto, a sua importância foi desde o início reconhecida por críticos de diferentes posições ideológicas como Óscar Lopes, Eduardo Lourenço e António José Saraiva.
Nos anos 50 ou 60, os leitores de Agustina eram sobretudo pessoas com mais de quarenta anos cultas e talvez na maior parte conservadoras.
A situação foi-se alterando nos últimos anos. Os filmes de Manoel de Oliveira e João Botelho sobre as suas obras trouxeram-lhe novos leitores, disponíveis para o espanto, a audácia do insólito e as contradições. O corpo estranho foi sendo assimilado sem perder o travo de estranheza.
Mas, mesmo agora, os leitores de Agustina não são os que procuram livros que agradam de imediato, mas os que se sentem capazes de vencer as dificuldades na obra de uma escritora que nunca as procurou nem as evitou, explorou as contradições da vida familiar, foi sensível ao efeito das mudanças políticas nos comportamentos e soube como poucos autores usar as virtualidades da língua portuguesa.
Ler os livros de Agustina continua a permitir alargar horizontes e viver outras vidas. Nenhum autor português teve a sua capacidade de transformar pessoas em personagens.
Através da sua obra, realista num certo sentido, podemos reconstruir a vida de gerações de portugueses, os seus desejos, ambições e medos. Embora centrada no Norte e sobretudo na região duriense, o cenário dos seus livros alargou-se a todo o país. Para conhecer o Porto, nada melhor do que ler A Muralha, para saber do Alentejo, Ternos Guerreiros, para o Douro, Os Incuráveis, e a Madeira torna-se mais nítida com a leitura de A Corte do Norte.
As comemorações do centenário de Agustina extravasam em muito a editora Relógio D’Água. Passam por acções de um conjunto de municípios nortenhos, de Amarante à Póvoa de Varzim, e pelas universidades do Porto, Minho, Trás-os-Montes e Alto Douro. Particular interesse têm as iniciativas levadas a cabo pela Fundação Gulbenkian, no dia 18 de Outubro em Lisboa, do Museu Serralves e do Museu Amadeo de Souza-Cardoso. Um mural com 120 metros foi pintado no Porto por doze artistas, tendo por motivos livros, personagens e objectos pessoais de Agustina. Uma exposição de fotografias do arquivo pessoal da família estará presente de 19 de Outubro a 19 de Novembro no Jardim da Biblioteca do Palácio Galveias. Está também em preparação um filme sobre A Sibila com realização de Eduardo Brito.
A Relógio D’Água publicará nos próximos dias reedições de Aforismos, Breviário no Brasil e A Alma dos Ricos e antes do final do ano uma antologia das suas entrevistas organizada por Lourença Baldaque. Algumas livrarias vão dar um destaque especial aos seus livros.
Em termos de traduções, sairá Embaixada a Calígula na editora La Umbría y la Solana, tudo indicando que outras se seguirão em espanhol, tanto mais que o suplemento literário do El País, Babelia, dedicou a sua capa à autora de A Sibila, que foi comparada a Yourcenar e Virginia Woolf.
Em Atenas, realizou-se a 4 de Outubro um atelier de tradução colectiva dedicado à obra de Agustina. E recebemos há pouco a tradução chinesa de Fanny Owen com apresentação de Hélia Correia.
O principal trabalho da Relógio D’Água continuará a ser o de pôr à disposição dos leitores os livros de Agustina com a adequada fixação dos textos e prefácios de escritores para que novos leitores possam conhecer uma autora ao mesmo tempo conservadora e iconoclasta, convencional e subversiva.
Relógio D’Água
15 de Outubro de 2022
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