«É a primeira vez que nasço como mulher. Há ainda em mim um rasto de bicho, um rasto de nevoeiro.
Sinto que os outros o intuem, obscuramente, quando me começam a conhecer; é estranho que não o vejam logo no início, mas eu mesma levei tantos anos a descobrir...
E então fogem. O que é primitivo mete medo. Ou ficam, entregam-se, deixam-se envolver...
A noite passada adormeci com uma pedra na mão. Uma ágata verde. Acordei com a mão cerrada, não a abrira a noite inteira.
Houve um tempo em que só conseguia adormecer agarrada a um corpo. Mas agora acho que me chega uma pedra. E comecei a gostar de rosas secas, eu que enchia os quartos de flores ou de folhagem, que tenho uma varanda sobre os ramos de uma árvore (uma casa numa árvore), onde desde pequena me sento no chão de pernas dobradas, sozinha como um pássaro, ouvindo o roçar das folhas, a linguagem do vento, o silêncio das flores.
Agora gosto de rosas secas. Creio que comprei todas as que existiam nas lojas, rosas vermelhas, pequeninas, desidratadas.
Não é fácil contar uma história quando não se tem uma noção clara do tempo. Para mim em Janeiro há as camélias e os rododendros, em Fevereiro as magnólias e os pássaros que gritam de madrugada, os junquilhos e a chuva, em Março os lilases que escondem as paredes da casa, a madressilva nos muros, as árvores do fogo…» [ pp. 17-18]
As Rosas Mortas e outras obras de Ana Teresa Pereira estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/ana-teresa-pereira/
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