29.7.20

De Mistérios de Lisboa, de Camilo Castelo Branco




«Tentar fazer um romance é um desejo inocente. Baptizá‐lo com um título pomposo é um pretexto ridículo. Apanhar uma nomenclatura, estafada e velha, insculpi‐la no frontispício de um livro e ficar orgulhoso de ter um padrinho original, isso, meus caros leitores, é uma patranha de que eu não sou capaz.
Se eu me visse assaltado pela tentação de escrever a vida oculta de Lisboa, não era capaz de alinhavar dois capítulos com jeito. O que eu conheço de Lisboa são os relevos, que se destacam nos quadros de todas as populações, com foro de cidades e de vilas. Isso não vale a honra do romance. Recursos de imaginação, se os eu tivera, não viria consumi‐los aqui numa tarefa inglória. E, sem esses recursos, pareceu‐me sempre impossível escrever os mistérios de uma terra que não tem nenhuns, e, inventados, ninguém os crê.
Este romance não é meu filho, nem meu afilhado.
Enganei‐me. É que eu não conhecia Lisboa, ou não era capaz de calcular a potência da imaginação de um homem. Cuidei que os horizontes do mundo fantástico se fechavam nos Pirenéus, e que não podia ser‐se peninsular e romancista, que não podia ser‐se romancista sem ter nascido Cooper ou Sue. Nunca me contristei desta persuasão. Antes eu gostava muito de ter nascido na terra dos homens verdadeiros, porque, peço que me acreditem, os romances são uma enfiada de mentiras, desde a famosa Astreia de Urfé, até ao choramingas Jocelyn de Lamartine.
Por consequência, diz o circunspecto leitor, vou‐me preparando para andar à roda num sarilho de mentiras.
Não, senhor. Este romance não é um romance: é um diário de sofrimentos, verídico, autêntico e justificado.» [Mistérios de Lisboa, p. 17]

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