Cristina Margato entusiasmou-se com A Invenção Ocasional, de Elena Ferrante, que reúne as crónicas publicadas semanalmente no The Guardian e tem ilustrações de Andrea Ucini.
«Nele Ferrante fala das mulheres que se recusam a ser demasiado qualquer coisa, demasiado belas, demasiado inteligentes, demasiado combativas, demasiado simpáticas. Porque o “demasiado de uma mulher produz violentas reações masculinas e, além disso, a inimizade das outras mulheres, que são obrigadas a disputar as migalhas dos homens. O demasiado dos homens, em contrapartida, gera admiração e lugares de comando. A consequência é que a força feminina não só é sufocada como, para não perturbar a paz, se sufoca a si própria”. Outro exemplo é o da crónica intitulada “A Narrativa Masculina do Sexo”, onde discorre sobre a forma como os homens reinventaram as mulheres segundo as suas necessidades sexuais, criando um cânone ao qual “não conseguimos ainda subtrair-nos”. Ou ainda o texto a que chamou “No Feminino”, no qual faz o exercício de pensar as personagens masculinas de romances clássicos como femininas, concluindo que “são somente os lugares-comuns sobre o feminino que nos fazem considerar essencialmente masculinos alguns comportamentos”. Os temas sobre o feminino são várias vezes abordados e a crítica à subjugação das mulheres a um sistema patriarcal é feroz. Elena Ferrante escreve sobre a forma como as escritoras são ignoradas: “Por mais que me esforce, não me lembro de muitos escritores que tenham declarado a sua dívida à obra de uma escritora.” Denuncia os dichotes que os escritores usam para rebaixar as suas colegas, atribuindo-lhes “quando muito a capacidade de escreverem historietas banais sobre casamentos, filhos, vagos idílios, romances cor-de-rosa ou melífluos dramalhões sentimentais”. Escreve sobre mães, sobre filhas, sobre a gravidez como momento de beleza e de temor, “manifestação portentosa do nosso corpo” que não pode ser cedida “a ninguém, nem aos pais loucos, nem à pátria, nem às máquinas, nem tão-pouco a formas cada vez mais ferozes da humanidade”. Confessa ter dois pesos e duas medidas, quando concede liberdade às mulheres que adaptam os seus textos, e exige respeito pelo olhar dela aos homens que têm as mesmas intenções. Em parte, porque rejeita o “imaginário de género poderosamente estruturado desde há milénios”.
Escreve também sobre a inveja. Sobre o ciúme. Também sobre o medo. Sobre o que a faz ser a última pessoa a sair da festa. Sobre a consciência da morte que lhe acentua a relação com a vida e o medo da doença que a faz desejar a morte. Sobre a primeira vez. E sobre a última vez. E em todos esses escritos, “sob o impulso de palavras tão luminosas como apaixonadas”, vamos redescobrindo essa “amiga genial” que é Elena Ferrante.»
[Expresso, E, 2019/08/03]
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