«Agora, num regresso a Lisboa, vou de comboio e leio um livrinho de Agustina Bessa-Luís sobre comboios, texto breve onde a viagem de comboio é definida, justamente, como “um processo romanesco”, um primeiro capítulo e uma história que se desconhece.
Para Agustina, o comboio equivale à província, ou à sua memória da província: os caixeiros-viajantes, os padres, os estudantes em férias, os contrabandistas, caçadores com os cães, almas snobes, almas sensatas, almas festivas, pessoas que lêem as “Décadas” de João de Barros ou comem requeijão, gente no tejadilho até, como nas imagens da Índia que todos já vimos. E o delegado do Ministério Público que vê passar o Sud-Express e não sabe se há-de ir para Condeixa ou para o Cairo.
Teoricamente, o livro de Agustina é sobre os painéis de azulejos das estações de caminho-de-ferro, essa “poesia pobre” mas significativa, mas a escritora, como é seu timbre, afasta-se do tema e investiga os comboios, mais do que os azulejos. O que é um comboio? Às vezes um fascínio tranquilo, outras uma aventura imaginativa, outras uma melancolia da separação e do inatingível. E vêm à ideia as imagens dos comboios que observava ao longe, comboios-correio, comboios de mercadorias, comboios da noite com as suas “luzes remotas e fugidias”. Mas um comboio, além de uma recordação, é também uma mitologia. Uma mitologia civilizacional e, lembra Agustina, libidinal.
Há uma clima de melodrama nos comboios, Anna Karénina atira-se para debaixo de uma locomotiva, porque o comboio é não apenas um epílogo da sua desgraça mas a continuação da sua ventura, o comboio como “viagem, fuga, fadiga sob um ângulo de distracção e esquecimento”.» [Pedro Mexia, E, Expresso, 24/11/2018]
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