5.9.18

Sobre Na Rússia com Rilke, de Lou Andreas-Salomé




«Logo desde o início, o que emerge destas páginas não é a descrição (por vezes pormenorizada) das paisagens, dos lugares visitados ou dos objectos expostos em museus e igrejas, mas a leitura social (e não só) que Lou Andreas-Salomé faz das condições em que, por exemplo, algumas obras de arte foram produzidas. Há ainda uma outra singularidade: a maneira como ela se projecta — parecendo tentar quase sempre descobrir-se, e elevar-se acima do quotidiano — numa dimensão religiosa que transcende os objectos descritos, a criação artística, e os próprios artistas. Consciente do acto criativo e da sua natureza, Andreas-Salomé entrega-se a exercícios de escrita que parecem emanar de uma vontade clara de cimentar para si própria uma certa maturidade que sentia estar a chegar durante aquela viagem (que era também uma viagem de regresso a um tempo vivido naquela Rússia, que havia anos tinha deixado — por vezes, parece escrever como se a amedrontasse olhar para trás, pelo sentimento de perda que daí advém). “Aquilo a que tantas vezes chamámos o paganismo da arte talvez seja a religião antiga e autêntica que ela encerra e que só encontramos na piedade da nossa infância e no deslumbramento da contemplação: na consciência de que o exterior e o interior são o mesmo e de que toda a fé assenta nessa unidade.” Desta maneira, as suas preocupações sobre crença, religião, Deus, arte, preconceitos sociais, plenitude de vida e moral, acompanham todas as páginas deste diário.
Durante esta viagem com Rilke, e logo no início, em Maio, ambos visitaram Tolstoi, “um pequeno camponês enfeitiçado, um ser mágico”, que lhes provocou “uma impressão tão estranha e espiritual, tão impressionante e comovedora, como se se tratasse de alguém que já não pertencia a este mundo”. Esta visita a Tolstoi, e o passeio que deram com ele, trouxe a Andreas-Salomé recordações da sua infância, e com isso a descoberta do motivo da melancolia que sempre a assaltava ao partir para o campo. São estas breves notas que por vezes dão ao texto — ou a algumas páginas – uma espécie de janela para uma “intimidade” que, na maioria das vezes, está disfarçada com a cortina de um pensamento filosófico mais profundo, sobretudo na última parte do livro, mas que não deixam de ser divagações que têm a autora sempre como objecto principal.» [José Riço Direitinho, Público, ípsilon, 31/8/2018. Texto completo em: https://www.publico.pt/2018/09/02/culturaipsilon/critica/elevar-acima-do-quotidiano-1842252 ]

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