A atribuição do Nobel de Literatura a Bob Dylan provocou em
Portugal reacções tão desencontradas como significativas.
O Nobel é o principal prémio literário internacional. Mas nem
por isso deixa de estar confinado ao horizonte da Academia Sueca, por mais que
esta tente alargá-lo com traduções de autores das mais variadas línguas e
geografias.
Além disso, se colocarmos num prato da balança os escritores
que receberam o Nobel e resistiram à passagem dos anos, e no outro os grandes
romancistas que nunca o receberam, de Conrad, Proust e Virginia Woolf a J. L.
Borges, é bem provável que o equilíbrio se rompa a favor destes últimos.
E há ainda, claro, uma ou duas dezenas de escritores que
poderiam receber o prémio este ano, de Javier Marías a Cormac McCarthy, e que,
mesmo entre os poetas de canções, haveria também Leonard Cohen e Chico Buarque.
Mas parece que a Academia Sueca está decidida a inovar e a
alargar as margens tradicionais do que considera literatura nobelizável,
desiludida talvez com a inexistência de grandes romances na última década. Isso
explica escolhas inesperadas como foram no seu tempo a de Churchill, de Selma
Lagerlöf (primeira mulher a receber o Nobel), a de um actor como Dario Fo, de
uma contista como Alice Munro ou das narrativas jornalísticas de Svetlana
Alexievich.
Até por isso as reacções são significativas. Abstraindo do
«paternalismo» e visão conspirativa do escritor Bruno Vieira Amaral, que afirma
que a Academia lhe atirou o prémio à cabeça e que Bob Dylan não merecia tal
gesto, houve dois tipos de reacções.
A dos poetas e críticos ligados à música, de Miguel Esteves
Cardoso a Pedro Mexia, que se mostraram favoráveis ou até entusiasmados.
E, no pólo oposto, a de alguns editores, críticos e escritores
a quem Dylan pouco diz ou que tinham na lista de expectativas nomes que iam de
Philip Roth a Adonis, passando por Pynchon, e tiveram reacções perplexas ou
desfavoráveis.
Há também o caso de editores que condicionam o seu catálogo à
procura dos nobelizáveis e que estão cada vez mais condenados a uma desilusão
anual em Outubro.
E o mesmo sucede com autores que a meio da vida vão
acomodando a escrita à procura de um prémio que afinal só traz uma fama anual,
algumas vendas mais, uma viagem invernosa a Estocolmo e solicitações capazes de
perturbar a mais fecunda das imaginações.
Foi assim que tivemos Alice Vieira a acusar esta atribuição
do Nobel de desvirtuamento e a indicar Murakami como alternativa (como se o
Nobel tivesse um passado de opções infalíveis, quando dezenas de escritores que
escolheu são só hoje lembrados pelos seus familiares com boa memória).
Recorde-se que, quando o Nobel foi atribuído em 2013 a Alice
Munro, a escritora Inês Pedrosa «denunciou» o facto de o prémio ser entregue a
uma simples contista (o que não impede que o seu último livro seja de contos e
que sublinhe agora a importância deste género literário).
Ou seja, há ainda muitos críticos e autores ligados ao perfil
que durante décadas serviu de referência à Academia Sueca e que Javier Marías
resumiu no seu artigo «Não tão Memoráveis»:
«O escritor “conhecido” e popular terá além disso de (…)
proclamar que apoia os oprimidos do mundo; ser um pouco perseguido no seu país
(ou, à falta disso, dizer que o é); clamar muito no deserto e ser voz
estridente das consciências adormecidas; deverá ser solene ou um pouco sombrio,
a amargura nunca é de mais; a sua obra deve reflectir a miséria do homem
contemporâneo, ou a fragilidade do homem contemporâneo, ou o desconcerto do
homem contemporâneo, ou o seu egoísmo, ou o seu sofrimento, ou a sua maldade,
ou a sua desorientação (em qualquer caso, algo negativo do homem contemporâneo,
ou melhor, um lugar-comum a todas as contemporaneidades); por último, não deve
falar muito de literatura nem ter qualquer sentido de humor.»
De qualquer modo, em favor de Bob Dylan pode dizer-se que com
a sua obra musical e literária será um dos vencedores do Nobel que vai
perdurar. Levou o melhor da poesia à música, absorvendo influências que vão de
Walt Whitman a Ashbery, passando por Allen Ginsberg e outros autores da Beat
Generation. Faz parte de uma linhagem antiquíssima que vai dos rapsodos gregos
a Leonard Cohen, passando pelos trovadores medievais. Nas suas letras criou
personagens que nada devem às de obras de narrativa ficcional. E as suas
crónicas inacabadas constituem uma referência de literatura autobiográfica.
P. S. Declaração de interesses. A Relógio D’Água publicou em
2006 em dois volumes uma ampla antologia da poesia de Bob Dylan (Canções
1962-2001).
Francisco Vale
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