«Knausgård, chamemos-lhe K., por comodidade, quer ser um homem
decente, um homem bom. Essa aspiração aparece várias vezes confessada ao longo
do extenso tomo 2 de A Minha Luta – Um homem Apaixonado (2009).
Mas não é fácil, isso de ser um homem bom. Sobretudo quando, como acontece com
K., a auto-estima é baixa, a exigência grande, e o sentido do ridículo
incessante. Um amigo de K. atribui-lhe uma inclinação ascética e até uma busca
da “santidade”. K. diz apenas que não quer fazer batota. Procura uma
interioridade e uma intensidade que dêem um sentido à vida, mas não abdica de
de um gosto nietzschiano, vitalista, pelas coisas físicas, concretas, que podem
aliás ser banalíssimas, pequenos prazeres como os alfarrabistas ou o tabaco.
Do volume 1, A Morte do Pai, em que acompanhámos o jovem K.
enquanto filho de um alcoólico intratável, passamos, no volume 2, a um K.
trintão, e agora também ele pai: casou-se com Linda, uma poetisa sueca, e
assistimos ao nascimento de duas meninas e um rapaz. Mas a alegria da
conjugalidade e da parentalidade convive com a exasperação quotidiana,
sobretudo porque na casa dos Knausgård é o marido quem assume todas as tarefas
domésticas, uma vez que a mulher tem um emprego fora de casa e ele não. Ele até
considera isso justo em teoria, mas na prática sente-se emasculado, está
constantemente a preparar refeições, a fazer as limpezas, a ir às compras, a
aturar birras, a passear carrinhos de bebés. K. acha toda esta situação pouco
viril. Introspectivo, auto-acusatório, quase calvinista, conta-nos os seus embaraços
e fracassos, insignificâncias que o diminuem enquanto homem. Não consegue
arrombar uma porta numa emergência. Não consegue pôr na ordem uma vizinha
barulhenta. Protesta meio sem jeito num restaurante. Hesita em separar dois
sujeitos numa briga. E quando tem uma fúria e atira com um copo, o copo não se
parte.
A domesticidade diminui a disponibilidade e diminui as
possibilidades, é isso que ele sente.» [Pedro Mexia, Expresso, E, 9/1/2016]
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