«Sir John
Falstaff, criado em Henrique IV Parte I, mantido em Henrique IV Parte II e
feito personagem central, diz-se que a pedido da rainha Isabel I, em As
Alegres Comadres de Windsor, tornou-se de facto uma das mais célebres figuras
da imensa galeria dramática de Shakespeare. A grande popularidade das duas
partes de Henrique IV deve-se principalmente a esta personagem, tendo em
inícios do século XVII o seu nome chegado mesmo a substituir o nome do Rei no
título das peças. Falstaff é uma daquelas raras personagens literárias que
adquirem vida própria, concentrando em si as atenções e subalternizando nesse processo
os textos de onde provêm, sendo vários os testemunhos de encenações, nos
séculos XVIII e XIX, que desvalorizam a acção e as personagens históricas da
peça em função do relevo dado à principal personagem cómica. Outro sinal desta
projecção de Falstaff para fora dos seus limites literários consiste na
aglutinação de cenas das peças onde ele intervém de molde a construir uma outra
obra onde ele é personagem principal, como acontece com a ópera Falstaff,
de Verdi, ou com o filme Chimes at Midnight (intitulado Falstaff em
Inglaterra), de Orson Welles.» [Da Introdução de Gualter Cunha]
«A atenção prestada em Henrique IV
Parte II ao quotidiano popular articula-se com a maior importância
adquirida pela figura de Falstaff, quando comparada com a sua presença em cena
na Parte I. Como é afirmado num texto crítico recente, nas cenas de
Falstaff, Shakespeare «dramatiza uma história social da outra Inglaterra — com
as suas tabernas, os seus bordéis e as suas quintas» (Bulman 169). No que respeita
a tabernas e bordéis, a primeira parte já nos tinha dado a imagem de uma vida
social, centrada na figura de Falstaff, caracterizada pela venalidade e pela
libertinagem, mas que ao mesmo tempo era equilibrada pela representação de um
mundo despreocupado e folgazão, por vezes carnavalesco, numa espécie de
projecção imaginária de uma velha e alegre Inglaterra, uma “merry England”
que épocas mais recentes tendem a vislumbrar no período isabelino mas que,
enquanto imaginário de um tempo sempre já passado, Shakespeare localiza aqui no
período de Henrique IV, cerca de dois séculos antes do seu próprio tempo. Nesta
segunda parte, contudo, deixa de se notar aquele equilíbrio, com os pratos da
balança a penderem agora para a apresentação de um mundo que mais aparece como
um submundo.» [Da Introdução de Gualter Cunha]
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