7.1.13

O ritmo cardíaco de Jack Kerouac




Francisco Vale


O que distinguiu Jack Kerouac como autor foi a sua decisão de viver as sensações sobre as quais desejava escrever. Frequentou regiões novas da consciência para delas dar testemunho e pagou por isso. Daí que tenha sido o principal criador e o primeiro dissidente da geração beat.

Pela Estrada Fora ligou emoções a alta velocidade a uma escrita a que Kerouac chamou «prosa espontânea» e que procurava captar a evanescente matéria da vida. O romance foi de Nova Iorque a São Francisco através da estrada 66, ligando influências ocidentais e orientais, o Atlântico ao Pacífico, o cristianismo ao budismo zen, num tenso arco narrativo.

Mas o autor de Tristessa foi também a ilustração do verso inicial de «Uivo» de Allen Ginsberg, «Vi os melhores espíritos da minha geração destruídos pela loucura (…)», cuja leitura na Six Gallery, em Outubro de 1955, foi a certidão pública de nascimento da geração beat.

O primeiro livro que Kerouac publicou, The Town and the City (1950), escrito ao longo de três anos, era influenciado pelo naturalismo de Thomas Wolfe. Teve favorável acolhimento crítico, mas Kerouac entrou em ruptura com o seu estilo, sob a influência de Neal Cassady. Foram as cartas que este lhe escreveu, «todas na primeira pessoa, velozes, loucas, confessionais, seríssimas», o relâmpago que iluminou a escrita de Kerouac. A partir daí, acelerou a sua velocidade pessoal, com as viagens automobilísticas, os empregos precários, a marijuana e o jazz, de modo a sentir plenamente as emoções que pretendia narrar. E procurou escrever sobre elas antes de poderem ser elaboradas pela memória e trabalhadas pelo estilo. Viveu ao ritmo das batidas do coração, em uníssono com todo um grupo de escritores e poetas publicados na City Lights de Ferlinghetti.

Morreu aos 47 anos, solitário, alcoolizado e caótico, em San Petersburg, Florida, destruído pelas contradições, ao procurar fazer de si mesmo um herói à altura dos protagonistas da sua ficção (escreveu um ciclo autobiográfico com um lendário Duluoz, que era ele próprio).

A primeira contradição foi a de ter sido um desportista que se tornou escritor. Na adolescência, em Lowell, praticava a corrida e o beisebol, o que lhe valeu uma bolsa para a Universidade de Columbia, em Nova Iorque, aos 18 anos. A carreira foi interrompida por uma lesão, o que o levou a alistar-se na marinha mercante e, mais tarde, na militar. Foi no regresso a Nova Iorque, aos 24 anos, que mergulhou na vida nocturna da cidade, na frequência das prostitutas, na droga e na amizade com Allen Ginsberg e William Burroughs e com delinquentes interessados na vida literária como Lucien Carr, Neal Cassady e Gregory Corso, uma vida em aberto conflito com as exigências do desporto.

Por outro lado, o Kerouac das viagens através dos EUA e do México, o marinheiro que, em 1943, em plena guerra, realizou perigosas viagens entre Boston e Liverpool, manteve sempre uma umbilical relação com a mãe e a casa familiar. Essa terá sido mesmo uma das razões para o fracasso dos seus dois primeiros casamentos (viveu os seus últimos anos com a terceira mulher Stella, amiga de infância, na casa da mãe, já inválida).

E há também a contradição entre a velocidade americana com que escreveu a versão final de Pela Estrada Fora (num rolo de 36,5 m para não perder tempo a mudar a folha na máquina de escrever) e Os Subterrâneos (três noites de que saiu exausto e «cor de laranja») e a delicada lentidão com que compôs numerosos haiku, esses poemas japoneses de três versos e dezassete sílabas, em que a procura de uma palavra pode requerer dias de meditação.

Em relação com esta bipolaridade literária, há uma outra, existencial e filosófica. Kerouac fez tudo para estimular os seus desejos. Mas ao mesmo tempo procurou no seu impreciso budismo zen a espécie de aniquilamento do desejo e até do eu que o budismo promete.

Kerouac era subversivo em termos pessoais e atravessou quase todas as fronteiras delineadas pelos preconceitos sexuais e étnicos dos Estados Unidos de então. Foi não apenas amigo, mas amante de Allen Ginsberg. Viajou partilhando o saco-cama com Gary Snyder, poeta que é hoje o único sobrevivente da geração beat. Ajudou o seu amigo Lucien Carr a encobrir o cadáver de um homem que este assassinara (foi preso por isso e o seu casamento com Edie Parker foi a exigência do sogro para lhe pagar a fiança). O seu companheiro da estrada 66, Neal Cassady, era versado em reformatórios e citações avulsas de Nietzsche. Kerouac viveu algum tempo com Esperanza, uma prostituta mexicana morfinómana que lhe inspirou Tristessa. A sua maior paixão terá sido uma rapariga negra de Nova Iorque, que surgirá como índia de São Francisco em Os Subterrâneos. Revelou enorme aptidão para consumir álcool, marijuana, benzedrina e cactos mexicanos ricos em mescalina. Mas, filho de emigrantes franco-canadianos originários da Bretanha, Kerouac sentia gratidão pelo modo como haviam sido acolhidos nos EUA. Nos últimos anos da sua vida, demarcou-se do movimento hippie, que ajudara a criar, partilhando com o poeta Gary Snyder a mochila, a nudez em grupo, a natureza e o misticismo oriental. Foi também apoiante da intervenção dos EUA no Vietname, apesar da sua recusa de todas as guerras. E criticou o aproveitamento que estaria a ser feito do movimento beat por esquerdistas, entre os quais o próprio Allen Ginsberg.

E, finalmente, há a contradição entre o autor geracional e o clássico.

É fácil considerar Kerouac um escritor geracional, pois a receptividade aos seus livros foi imediata, como se «uma geração inteira estivesse à espera de ser escrita» (William Burroughs). Kerouac era um narrador mais interessado em agarrar o leitor pelas entranhas, pelo ritmo e a emoção, do que pela elaboração estética associada à grande literatura.

No entanto, Pela Estrada Fora foi um dos cem melhores livros em língua inglesa do século xx na lista da Modern Library e a recente recuperação do «rolo original» constituiu um acontecimento editorial que atravessou o Atlântico. E mais de meio século após a edição do romance, podemos ver o filme que sobre ele fez Walter Salles. E ainda em 2013 Big Sur será igualmente adaptado ao cinema.

1 comentário:

  1. Faço a pergunta ao Ex. Sr. Francisco Vale, editor da Relógio D` Água se está para breve a tradução do livro: The Sea Is My Brother.
    Obrigado
    Cumprimentos
    Mário Pimenta.

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