18.8.23

Sobre «Neve, Cão e Lava», de Rui Nunes

 

«Na última década, a obra literária de Rui Nunes foi-se tornando cada vez mais esparsa e avessa a códigos literários. É como se o escritor pairasse sobre um campo de escombros, um cenário apocalíptico, consciente de que a literatura já não é capaz de abarcar a complexidade do mundo e que, por isso, o máximo a que pode aspirar é mergulhar-nos no desconcerto, escancarando a “violência terminal” do nosso tempo e exibindo, como num espelho, o brilho fátuo das nossas próprias ilusões. De certa maneira, os textos de Rui Nunes nascem da assumida dificuldade de dar um sentido ao que somos, ao modo como experimentamos a vida e nos relacionamos com a morte.
Neste novo livro, o mais do que esquivo narrador fala-nos a partir de um exílio sem regresso, um lugar que é “a nossa terra exausta, a nossa palavra exausta, a nossa escrita exausta”. Como se tentasse inventar, depois da tábua rasa, uma linguagem nova, no meio das ruínas da cultura do passado (veja-se o extraordinário parágrafo em que cruza personagens de Stendhal, de Tolstoi, de Kafka, de Camus, da “Ilíada”, para terminar numa memória de infância, a mão do avô como primeira e última chegada, a sua Ítaca).
(…)
A escrita de Rui Nunes não facilita a vida ao leitor. (…) Sabe soltar os demónios do texto e tocar na beleza com a ponta dos dedos: “os nenúfares rompem o gelo. Suja, a água. Espesso de tinta: o verde flutuante das folhas. Algumas libelinhas mortas: o finíssimo vidro do frio relembra o voo de um estilhaço”.»

José Mário Silva, na revista E, do Expresso, 2023-08-18

Sem comentários:

Enviar um comentário