«Ela afasta os lençóis. O seu rosto tornara-se um pouco mais escuro, adquirira um tom esverdeado. Há qualquer coisa nela de malsão, de não humano. Para Mateus, as cicatrizes daquele corpo já não se assemelham a cortes sarados mas a sinais de nascença ou a marcas de sangue dos antepassados. Estranha-lhe os olhos sem qualquer brilho, sem movimento, os ombros descaídos que formam duas grandes covas junto às omoplatas, uma ruga medonha por baixo do seio como se o coração tivesse sido arrancado por ali. Salomé senta-se na cama e tapa o sexo com as mãos. Despiu-se durante a noite sem que ele desse por isso. Sentira-a mexer e agitar o corpo, a sonhar, mas teve receio de a apertar contra si, de a acordar, de denunciar a sua excitação. Agora, ali, nua, descalça, quieta, a olhar para o chão, é a imagem de uma criança estremunhada à espera de que o pai a venha buscar para lhe dar banho. Enrola-a numa toalha. Pega nela ao colo e parece-lhe que não encontra músculos nem ossos. É um corpo jovem, mas desgastado, com uma pele transparente como se fosse feita de vidro. Arde no seu interior uma beleza sombria que não provém de matéria alguma. Sem carne, sem qualquer sangue. Há ali um princípio de corrosão, alguém lhe terá injectado um veneno que ainda não produziu efeito.»
A Rapariga sem Carne, finalista do Grande Prémio de Romance e Novela 2012 da APE, e outras obras de Jaime Rocha estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/jaime-rocha/
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