«Diz-se que durante muito tempo teríamos suportado, e suportaríamos ainda hoje, um regime vitoriano. A imperial beata falsa figuraria no brasão da nossa sexualidade, refreada, muda, hipócrita.
Ao que se diz, ainda no início do século XVII era corrente uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo; as palavras diziam-se sem reticências excessivas e as coisas sem demasiado disfarce; havia com o ilícito uma familiaridade tolerante. Os códigos do grosseiro, do obsceno, do indecente, eram bem frouxos, comparados com os do século XIX. Gestos directos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças atrevidas vagabundeando sem embaraço nem escândalo no meio dos risos dos adultos: os corpos ostentavam-se.
A esta plena luz ter-se-ia seguido um rápido crepúsculo até às noites monótonas da burguesia vitoriana. A sexualidade é então cuidadosamente aferrolhada. Transfere-se. A família conjugal confisca-a e absorve-a inteiramente na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, faz-se silêncio.» [p. 9]
História da Sexualidade I — A Vontade de Saber (trad. Pedro Tamen) e outras obras de Michel Foucault estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/michel-foucault/
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