27.3.23

Sobre O Mundo de Ortov, de Jaime Rocha

 



“SERAFIM — Caiu-me o mundo em cima, doutor, não sei se já sabe do Ortov, caiu-me mesmo o mundo quando soube que ele se queria matar com veneno dos ratos. Foi buscar um frasco daquilo que tinha guardado na despensa e despejou-o para uma tigela, era para beber como se fosse xarope, imagine, passou dias a calcar as bolinhas do veneno com uma colher de madeira, daquelas do pilão, queria sentir a gengiva a arder e o fluxo do veneno a descer pela garganta como se fosse um bicho ou vinho antigo, já azedo, pelo menos foi o que ele disse. Só que ficou a olhar para aquilo, aquela cor suja, e não conseguiu, não conseguiu, doutor, esse foi o mal, agora não fala de outra coisa, do mundo lá fora, a ruir, do fascismo a chegar não se sabe de onde, da democracia virada do avesso, sei lá mais o quê, ninguém o atura. É isto, doutor, que me preocupa, voltarmos atrás, às prisões, aos campos de concentração, às caves, aos fuzilamentos. Sabe o que lhe digo?, é o extermínio, o extermínio. E desta vez só vão sobrar alguns, e sabe quem, doutor?, os gajos dos bancos e os médicos para os tratarem, nem os enfermeiros escapam, todos para Marte ou para os infernos, lembra-se da última vez que aqui vim?, falei-lhe do Caramulo, de quando lá estive a definhar, com os pulmões a deitar fumo, foi ali que conheci o Ortov. Passava o dia encostado à janela, a contemplar aquela paisagem, a serra toda a descer, os nevoeiros, o sol, a neve, tudo o que há de melhor na natureza, ainda havia pássaros.” [Fragmento da peça Serafim Vai ao Médico]


“Quem é Ortov? Uma personagem, um espantalho, um corpo que anda e gesticula, uma ideia, um texto, um homem, uma mulher, um ser errante, um boneco, um actor, uma poltrona, um espelho, um poeta, um animal, um gravador, um saco de plástico, ou é tudo isso ao mesmo tempo? Ou será a nossa própria vida, a de nós todos, o presente inquietante, o futuro incerto, o bem e o mal?” [Fragmento da Introdução, “Ortov — Vida e Território”]


O Mundo de Ortov e outras obras de Jaime Rocha já editadas pela Relógio D’Água estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/jaime-rocha/

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