2.1.23

Maria Stepánova em entrevista a Isabel Lucas, a propósito do livro Memória da Memória

 




«O processo de escrita é o processo da sua reflexão, intimamente exposta, convocando os vários mecanismos de preservação da memória ao longo dos tempos — da imagem, à escrita, à oralidade, às redes sociais. E a certeza, logo no início: a de que nenhuma história chega até nós íntegra. Isso não é impedimento para a busca. Só aumenta a ânsia da procurar como refere a escritora nesta conversa a partir de Berlim, onde vive desde o início de Março, pouco depois de a guerra ter começado.

“nunca fez parte dos meus planos sair”, afirma ao Ípsilon um dia antes do Natal  num inglês carregado de sotaque russo, a língua que diz que deve ser reinventada porque se tornou uma língua de violência. Ao colo está Rio Pequeno, a cadela que trouxe de Moscovo, a quem dirige palavras de conforto no mesmo russo com que escreve a sua poesia (tem cinco livros traduzidos em várias línguas fora do russo, sobretudo em inglês). Vê-a como uma forma de resistência.

Aprendeu a prosa, uma nova fisicalidade, o processo seduziu-a, e também na prosa fez piruetas com a forma. Evocando Sebald, escreve neste  Memória da Memória: “Eu própria estou pronta a aceitar qualquer mistura do que existiu e não existiu, do documental e fictício.”


— Memória da Memória saiu há cinco anos, chega agora a Portugal e ao lê-lo, com todas as menções à história do território que ele percorre, é inevitável não pensar no que está a acontecer actualmente e no significado que se acrescentou ao muito do que escreve. Isto remete a outra ideia: a da aparente circularidade ou repetição da história, neste caso a história da Rússia.


— Sim, para mim é um saber devastador. A História chegar ao ponto em que um homem parece replicar acontecimentos catastróficos. No decorrer da História somos atraídos por toda a espécie de coincidências e correspondências. Com a História russa essa tendência parece ser ainda maior. É uma dança onde há demasiada História. Mas resisto muito à ideia de que a Rússia tem uma tendência especial para reproduzir não exactamente os mesmos acontecimentos, mas talvez uma certa constelação, uma certa relação entre os que estão no poder e a população do país. O facto de certos acontecimentos tenderem a repetir-se pode ser apenas um resultado natural do enquadramento imperial em que a Rússia existe. Mas fala-se numa espécie de maldição, e há pessoas que não param de se interrogar: será que a Rússia está condenada a este estado de opressão e repetição? A minha resposta foi sempre que não. Ninguém está condenado a repetir-se a si mesmo, e há sempre uma maneira de se sair disso. Por agora, vemos a Rússia e parte da Europa presas à mesma constelação. Mas tenho a sensação de que o que está a acontecer não é uma guerra contemporânea, não é explicável em categorias geopolíticas. É outra coisa. O que Putin está a fazer é uma guerra de memória.» [Entrevista de Isabel Lucas, Ípsilon, Público, 30/12/2022; fotografia de Andrei Natotskinsky; https://www.publico.pt/2023/01/02/culturaipsilon/entrevista/maria-stepanova-putin-guerra-memoria-2032931]


Memória da Memória — Romança, de Maria Stepánova (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra), está disponível em https://relogiodagua.pt/produto/memoria-da-memoria-pre-publicacao/

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