«O Menino dormia na sala de dupla varanda — que passava de uma a outra face da casa, já o disse aqui mais de uma vez. Um Menino de formas esplêndidas. Dormia um sono profundo. É um Cupido adormecido, reclinado sobre o lado direito. Uma perna flectida um pouco acima do joelho, oculta e desoculta, sob o ritmo da respiração, o nascente sexo. Está deitado sobre o ouro e a prata. Perfeito no seu ser a um tempo formoso e especioso. Tem, sobre o fio de oiro entrelaçado no de prata, a atracção de Eros, espécie de força fundante. Ainda tão infante, estou em crer que, sob a luz coalhada da sua cama de ouro e prata, não seja ainda um deus e somente a fertilidade nascente e sedutora de um daimon.
No momento em que passámos à sala, nestes dias do fim do ano, chamada do presépio, as figuras todas se moviam e saudavam, como se fossem peças de um realejo. No ar da sala ficaram os cheiros de resinas queimadas ao nascer do sol; da mirra, quando o sol chegou a meio do céu; e de um estranho perfume composto de alfazema e alho — sim, de alho, que é perfume indispensável, vindo dos fundos da cozinha —, no declínio do sol. Tudo em louvor do Menino. Mas depressa se apaziguaram, guardadas pela maior imobilidade, pois deram pela nossa entrada.»
Esta e outras obras de João Miguel Fernandes Jorge estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/joao-miguel-fernandes-jorge/
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