11.12.20

No centenário de Clarice Lispector

 

«Em todos os seus livros [de Clarice Lispector] há um Brasil que ora transborda, ora se esvazia, que ora se despedaça e nos despedaça, ora nos machuca, apoquenta e apazigua. Mas, geralmente, é sempre um Brasil insaciável, atiçado, pronto a pisotear e a sacudir-nos. O seu Brasil é um território vibrátil em constante alerta, e por isso é habitualmente falsa a sensação de segurança. Segurança interior, estabilidade. Por exemplo, as suas personagens, na grande maioria femininas, são temperadas por uma avassaladora angústia. São mulheres suspensas em ponto bala, mulheres que, desejando demais a liberdade, também a acabam por temer. Mulheres que, questionando demais a realidade, a família, a casa, o casamento, a fidelidade, a palavra, a natureza, também se permitem diluir no seu veneno morno. Mulheres que, por perscrutarem a fundo o seu passado, voluntariamente soçobram. Daí ser fácil pressentir que em toda a atmosfera de Lispector há uma teia minada por uma ingenuidade desarmoniosa, cujos contornos nos impossibilitam de voltar atrás. É uma desarmonia labiríntica, descontínua, interrompida sem pressa por pequenas e obscuras decepções, dissabores do quotidiano, engulhos conjugais, desejos em contramão.»

[Rita Homem de Mello, Jornal I, 2020/12/10: https://ionline.sapo.pt/artigo/717755/clarice-lispector-cem-anos-de-um-coracao-a-dar-corda-a-uma-historia-que-nao-acabara-nunca?seccao=Mais_i]

As obras de Clarice Lispector estão disponíveis em: https://relogiodagua.pt/autor/clarice-lispector/


 

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