Em homenagem ao nascimento de Clarice Lispector, a 10 de Dezembro de 1920, a Relógio D’Água publica o Prefácio que Lídia Jorge escreveu para a obra que deu início à sua edição sistemática em Portugal, o livro de contos «Laços de Família».
O texto de Lídia Jorge tem 31 anos, mas mantém toda a actualidade no que se refere à obra da autora de «A Paixão segundo G. H.». A única diferença é que ela é agora mais conhecida em Portugal do que o era então.
Em Janeiro próximo, a Relógio D’Água publicará «Todas as Cartas», de Clarice Lispector, completando assim a divulgação de praticamente toda a sua obra em Portugal.
FV
«Para Clarice Lispector
Entre nós, poucos são aqueles que têm de Clarice outra referência que não seja o nome, e no entanto, trata‑se de um dos mais singulares escritores da nossa língua. As razões deste clamoroso desconhecimento não podem deixar de se inscrever na contenciosa fraternidade que existe entre Brasil e Portugal e que leva a que, salvo raras excepções, as ligações em Cultura se produzam pelas cinturas mais frágeis ou já canónicas. No caso de Clarice, porém, a sua obra tarda de modo inusitado a chegar até nós e por duas razões — a primeira é que Clarice Lispector deixou há muito de ser um escritor de pequenos grupos aficionados para ser, no Brasil, uma referência obrigatória caída no domínio público universitário que a cada hora a faz e a refaz de análises e suposições teóricas. A segunda razão de estranheza prende‑se com o facto de que, sendo Clarice parente legítima da dispersão de Pessoa, não tenha aproveitado da onda irreversível em que se vai espalhando a fama do poeta português. Que resistam, pois, outras culturas como a francesa a deixar‑se emocionar com a prosa de Clarice, ainda se entende. Entre nós, que nem se conheça por quase impublicação, é incompreensível. Sobretudo porque quem leu sabe que a prosa de Clarice assenta em uma daquelas raras escritas da qual se sai diferente quando uma vez lá se entrou, como se ela mesma fosse e contivesse em si a oferta de uma revelação surpreendente e por vezes devastadora. Deve‑se dizer quando se oferece ou empresta Clarice Lispector — Protejam‑se contra a tortura da beleza.
Ou mais propriamente, protejam‑se contra a beleza da tortura. De facto, as páginas de Clarice, longas ou breves que sejam, incomodam a ponto de doer e ao mesmo tempo empurram para a escrita como única forma de compreender e existir. Ou melhor, têm a qualidade próxima da que se reconhece em Faulkner, em Virginia Woolf, em Joyce ou em Kafka, para falar apenas dos seus quase irmãos de tempo literário e parentes na condição de alma. Isto é, contém um mistério que permanece para além de tudo o que na escrita é decifrável e que chama com uma voz parada e luminosa para um estado de alma próximo do êxtase manso, ou ele mesmo. Sem pretender brandir o ferro da importância e dos papéis que cada um tem no Mundo, devo dizer mesmo que reivindico para Clarice, como para nenhum dos outros atrás citados, a capacidade de desencadear o manso e o violento que acontece a partir do limiar onde a linguagem se enaltece antes da ficção. Porque disso se trata — os seus textos, longos, breves ou fragmentários, falam de uma experiência inefável em que a escrita surge como salvação, e por isso, o seu jogo é explêndido, humilde e derradeiro. Tão derradeiro que dispensa a alegoria e a metáfora, a ficção dispensa a ficção. Quem uma vez se deixou revestir do olhar que dimana da prosa de Clarice compreende como a escrita pode ser a vida, muito mais do que ela, nunca parte dela. Essa, de todas, a melhor revelação. O sentimento de que quem assim escreveu o fez de forma absoluta leva a que ninguém se surpreenda, quando antes da biografia se conheceu a obra, que dez meses antes da morte, em Fevereiro de 1977, Clarice tenha declarado numa entrevista que cedeu à TV Cultura de São Paulo — “Quando não escrevo, estou morta.” E que tenha terminado o diálogo com o jornalista declarando — “Neste momento estou morta. É do meu túmulo que vos falo.” Naturalmente que teria de ser assim. Estamos perante a vida do “escritor perfeito”, aquele para que muitos tendem mas poucos alcançam, o que não tem a ver com a vontade.
Mas se o halo da sua misteriosa singularidade se desprende de toda a obra por inteiro — e cada um vê‑lo‑á como entenda e possa —, não é nos romances que lhe deram mais fama que Clarice melhor me abre a sua porta. Pelo contrário. Sem pretender diminuir de modo algum a revelação que pode constituir “Perto do Coração Selvagem”, seu romance de estreia, ou “A Maçã no Escuro” ou ainda “A Paixão segundo G. H.”, é no fragmento que a sinto revelada, melhor encontro a sua arte poética e o espanto da existência, no fundo, as duas matérias compulsivas da sua Arte. Suponho mesmo que Clarice pertence àquela categoria de escritores para quem o fulgor é encontrado em breves momentos sem antecedente nem consequente, ainda que múltiplos e repetidos, sendo os romances tentativas de conjugar parcelas que não precisariam de ser emparceladas para constituírem totais. Mas Clarice quis que se juntassem em parábolas sem espessura para que o fossem. Aliás, também na insistência da junção dos pequenos incidentes autónomos Clarice se aproxima da sua quase contemporânea Virginia Woolf, tal como na tentativa de os fazer convergir e os fazer unir literariamente. Essa tentativa em Clarice desprende‑me por vezes o gosto da leitura. No fragmento não. Em cada um ela é inteira, não dizendo em três linhas menos do que se diria em dez páginas, e no entanto revelando o mundo. É de três linhas a crónica intitulada “A Experiência Maior” e diz tanto, que mais sobre a ficção não se pode dizer: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.”
Escrevendo como escreveu, a sua escrita não poderia deixar de criar resistência. Então o confronto entre o contar e o apenas dizer era uma contenda e Clarice não pôde afastar‑se do dilema. Mas colocou‑se do lado certo, isto é, do seu próprio lado, o que é uma felicidade para a escrita e para o escritor, já que a perdição acontece exactamente quando esse encontro não se produz. Mas Clarice achou‑se. Ela repousa na palavra de Alberto Dines — “As histórias não têm desfecho” — exactamente para abrir uma das suas fulgurantes histórias sem desfecho que constitui o texto inqualificável Onde Estivestes de Noite e que dá o título à publicação onde se encontra. De facto, não tem desfecho. Porque precisaria de ter se se trata de uma oração maligna sobre o imponderável da beleza e da perfeição que o ser andrógino experimenta no cimo da montanha? O mesmo se pode dizer sobre “O Ovo e a Galinha”, nono conto‑crónica de “A Legião Estrangeira”, centrado no mistério do ovo, texto tão místico e inqualificável que haveria de levar Clarice a lê‑lo num congresso de bruxaria em que representou o seu país.
Às vezes, porém, esses textos inqualificáveis que tanto removem são contos. “Laços de Família”, obra com que na prática se inicia a publicação de Clarice Lispector entre nós, é um conjunto de treze contos surgidos no Brasil em 1960, e contém alguns dos traços que esse género costuma ter. Tem personagens, tem aventura, acidentes e desfechos. Só que neles, tanto quanto nos romances, os personagens começando por ser comuns, logo se revelam incomuns, avançando como se não tivessem olhos para ver, e quando quisessem ouvir não tivessem ouvidos. Ou inversamente, se têm ouvidos não têm sons, e se têm olhos não há paisagem que se veja. Quando acontece a coincidência, e é por escassos instantes, a visão produz‑se, dá‑se a fulminação e a matéria ficcional sucede. É por esses momentos de excepção do conhecimento que laboram os personagens e em torno deles labora a peripécia, que, aliás, não é mais do que uma reviravolta interior acompanhada pela raiva, o ódio ou a náusea diante da abertura no escuro, ou dela decorrendo em marcha inversa. Trata‑se de contos sobre a aventura do conhecimento no sentido menos cartesiano possível, acontecido portas adentro do familiar, até se chegar, em última instância, à poderosa visão do nada. Não admira, pois, que se evoque Sartre e “La Nausée” quando se deseja entender “Laços de Família”, obra onde se encontram alguns dos mais célebres contos brasileiros, como é o caso de “O Búfalo”, “O Jantar”, “Feliz Aniversário” e sobretudo “Amor”, narrativa que se tornou de leitura obrigatória para quem se inicie na compreensão do processo epifânico de Clarice. É justo que se evoque certo modo existencialista de questionar o ser e o não ser, mas, retomando Sartre, onde o autor francês fica pela demonstração, Clarice Lispector cria uma apoteose mística e pagã sobre a marcha da descoberta. Essa a primeira das incomparáveis diferenças.
Claro que toda a obra vive do influxo do seu tempo histórico e a prosa de Clarice não se mantém asséptica em relação ao mundo mental em que viveu e, por isso, com alguma facilidade se pode integrar a autora de “A Maçã no Escuro” no quadro de certo simbolismo e certo decadentismo. Também se pode aproximá‑la do metamorfismo de Kafka, do psicologismo brutal de Joyce ou do enfoque microscópico de Virginia Woolf, ou ainda da transversalidade temporal de Faulkner. Pode‑se. Clarice, porém, fica para além das leituras que tenha feito, revelando uma originalidade pessoal tão intensa quanto cada um dos outros autores isoladamente a revelou também. Singularidade que teria levado a que já na adolescência Clarice escrevesse contos que começavam naturalmente por “Era uma vez…” para logo interromper e terminar — “… Meu Deus.”
Ao Vergílio Ferreira, que me deu a conhecer Clarice.
Lisboa, 26 de Novembro de 1989
LÍDIA JORGE»
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