9.12.20

No Centenário de Clarice Lispector

 



Em homenagem ao nascimento de Clarice Lispector, a 10 de Dezembro de 1920, a Relógio D’Água publica o Prefácio que Lídia Jorge escreveu para a obra que deu início à sua edição sistemática em Portugal, o livro de contos «Laços de Família».

O texto de Lídia Jorge tem 31 anos, mas mantém toda a actualidade no que se refere à obra da autora de «A Paixão segundo G. H.». A única diferença é que ela é agora mais conhecida em Portugal do que o era então.

Em Janeiro próximo, a Relógio D’Água publicará «Todas as Cartas», de Clarice Lispector, completando assim a divulgação de praticamente toda a sua obra em Portugal.

FV


«Para Clarice Lispector

Entre nós, poucos são aqueles que têm de Clarice outra referência que não seja o nome, e no entanto, trata­‑se de um dos mais singulares escritores da nossa língua. As razões deste clamoroso desconhecimento não podem deixar de se inscrever na contenciosa fraternidade que existe entre Brasil e Portugal e que leva a que, salvo raras excepções, as ligações em Cultura se produzam pelas cinturas mais frágeis ou já ca­nónicas. No caso de Clarice, porém, a sua obra tarda de mo­do inusitado a chegar até nós e por duas razões — a primeira é que Clarice Lispector deixou há muito de ser um escritor de pequenos grupos aficionados para ser, no Brasil, uma refe­rência obrigatória caída no domínio público universitário que a cada hora a faz e a refaz de análises e suposições teóricas. A segunda razão de estranheza prende­‑se com o facto de que, sendo Clarice parente legítima da dispersão de Pessoa, não tenha aproveitado da onda irreversível em que se vai espa­lhando a fama do poeta português. Que resistam, pois, outras culturas como a francesa a deixar­‑se emocionar com a prosa de Clarice, ainda se entende. Entre nós, que nem se conheça por quase impublicação, é incompreensível. Sobretudo por­que quem leu sabe que a prosa de Clarice assenta em uma da­quelas raras escritas da qual se sai diferente quando uma vez lá se entrou, como se ela mesma fosse e contivesse em si a oferta de uma revelação surpreendente e por vezes devastadora. Deve­‑se dizer quando se oferece ou empresta Clarice Lispector — Protejam­‑se contra a tortura da beleza. 

Ou mais propriamente, protejam­‑se contra a beleza da tor­tura. De facto, as páginas de Clarice, longas ou breves que sejam, incomodam a ponto de doer e ao mesmo tempo empur­ram para a escrita como única forma de compreender e existir. Ou melhor, têm a qualidade próxima da que se reconhece em Faulkner, em Virginia Woolf, em Joyce ou em Kafka, para falar apenas dos seus quase irmãos de tempo literário e pa­rentes na condição de alma. Isto é, contém um mistério que permanece para além de tudo o que na escrita é decifrável e que chama com uma voz parada e luminosa para um estado de alma próximo do êxtase manso, ou ele mesmo. Sem preten­der brandir o ferro da importância e dos papéis que cada um tem no Mundo, devo dizer mesmo que reivindico para Clari­ce, como para nenhum dos outros atrás citados, a capacidade de desencadear o manso e o violento que acontece a partir do limiar onde a linguagem se enaltece antes da ficção. Porque disso se trata — os seus textos, longos, breves ou fragmen­tários, falam de uma experiência inefável em que a escrita sur­ge como salvação, e por isso, o seu jogo é explêndido, hu­milde e derradeiro. Tão derradeiro que dispensa a alegoria e a metáfora, a ficção dispensa a ficção. Quem uma vez se deixou revestir do olhar que dimana da prosa de Clarice compreende como a escrita pode ser a vida, muito mais do que ela, nunca parte dela. Essa, de todas, a melhor revelação. O sentimento de que quem assim escreveu o fez de forma absoluta leva a que ninguém se surpreenda, quando antes da biografia se co­nheceu a obra, que dez meses antes da morte, em Fevereiro de 1977, Clarice tenha declarado numa entrevista que cedeu à TV Cultura de São Paulo — “Quando não escrevo, estou morta.” E que tenha terminado o diálogo com o jornalista de­clarando — “Neste momento estou morta. É do meu túmulo que vos falo.” Naturalmente que teria de ser assim. Estamos perante a vida do “escritor perfeito”, aquele para que muitos tendem mas poucos alcançam, o que não tem a ver com a vontade. 

Mas se o halo da sua misteriosa singularidade se despren­de de toda a obra por inteiro — e cada um vê­‑lo­‑á como en­tenda e possa —, não é nos romances que lhe deram mais fa­ma que Clarice melhor me abre a sua porta. Pelo contrário. Sem pretender diminuir de modo algum a revelação que pode constituir “Perto do Coração Selvagem”, seu romance de estreia, ou “A Maçã no Escuro” ou ainda “A Paixão segundo G. H.”, é no fragmento que a sinto revelada, melhor encontro a sua arte poética e o espanto da existência, no fundo, as duas matérias compulsivas da sua Arte. Suponho mesmo que Cla­rice pertence àquela categoria de escritores para quem o fulgor é encontrado em breves momentos sem antecedente nem con­sequente, ainda que múltiplos e repetidos, sendo os romances tentativas de conjugar parcelas que não precisariam de ser emparceladas para constituírem totais. Mas Clarice quis que se juntassem em parábolas sem espessura para que o fossem. Aliás, também na insistência da junção dos pequenos inci­dentes autónomos Clarice se aproxima da sua quase contem­porânea Virginia Woolf, tal como na tentativa de os fazer convergir e os fazer unir literariamente. Essa tentativa em Clarice desprende­‑me por vezes o gosto da leitura. No fragmento não. Em cada um ela é inteira, não dizendo em três li­nhas menos do que se diria em dez páginas, e no entanto revelando o mundo. É de três linhas a crónica intitulada “A Experiência Maior” e diz tanto, que mais sobre a ficção não se pode dizer: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Mi­nha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.”

Escrevendo como escreveu, a sua escrita não poderia dei­xar de criar resistência. Então o confronto entre o contar e o apenas dizer era uma contenda e Clarice não pôde afastar­‑se do dilema. Mas colocou­‑se do lado certo, isto é, do seu pró­prio lado, o que é uma felicidade para a escrita e para o escri­tor, já que a perdição acontece exactamente quando esse en­contro não se produz. Mas Clarice achou­‑se. Ela repousa na palavra de Alberto Dines — “As histórias não têm desfecho” — exactamente para abrir uma das suas fulgurantes histórias sem desfecho que constitui o texto inqualificável Onde Estivestes de Noite e que dá o título à publicação onde se encontra. De facto, não tem desfecho. Porque precisaria de ter se se trata de uma oração maligna sobre o imponderável da beleza e da perfeição que o ser andrógino experimenta no cimo da mon­tanha? O mesmo se pode dizer sobre “O Ovo e a Galinha”, no­no conto­‑crónica de “A Legião Estrangeira”, centrado no mistério do ovo, texto tão místico e inqualificável que haveria de levar Clarice a lê­‑lo num congresso de bruxaria em que represen­tou o seu país. 

Às vezes, porém, esses textos inqualificáveis que tanto re­movem são contos. “Laços de Família”, obra com que na práti­ca se inicia a publicação de Clarice Lispector entre nós, é um conjunto de treze contos surgidos no Brasil em 1960, e con­tém alguns dos traços que esse género costuma ter. Tem personagens, tem aventura, acidentes e desfechos. Só que neles, tanto quanto nos romances, os personagens começando por ser comuns, logo se revelam incomuns, avançando como se não tivessem olhos para ver, e quando quisessem ouvir não tivessem ouvidos. Ou inversamente, se têm ouvidos não têm sons, e se têm olhos não há paisagem que se veja. Quando acontece a coincidência, e é por escassos instantes, a visão produz­‑se, dá­‑se a fulminação e a matéria ficcional sucede. É por esses momentos de excepção do conhecimento que labo­ram os personagens e em torno deles labora a peripécia, que, aliás, não é mais do que uma reviravolta interior acompanha­da pela raiva, o ódio ou a náusea diante da abertura no escu­ro, ou dela decorrendo em marcha inversa. Trata­‑se de con­tos sobre a aventura do conhecimento no sentido menos cartesiano possível, acontecido portas adentro do familiar, até se chegar, em última instância, à poderosa visão do nada. Não admira, pois, que se evoque Sartre e “La Nausée” quando se deseja entender “Laços de Família”, obra onde se encontram al­guns dos mais célebres contos brasileiros, como é o caso de “O Búfalo”, “O Jantar”, “Feliz Aniversário” e sobretudo “Amor”, narrativa que se tornou de leitura obrigatória para quem se inicie na compreensão do processo epifânico de Clarice. É justo que se evoque certo modo existencialista de questionar o ser e o não ser, mas, retomando Sartre, onde o autor francês fica pela demonstração, Clarice Lispector cria uma apoteose mística e pagã sobre a marcha da descoberta. Essa a primeira das incomparáveis diferenças. 

Claro que toda a obra vive do influxo do seu tempo histó­rico e a prosa de Clarice não se mantém asséptica em relação ao mundo mental em que viveu e, por isso, com alguma facilidade se pode integrar a autora de “A Maçã no Escuro” no quadro de certo simbolismo e certo decadentismo. Também se pode aproximá­‑la do metamorfismo de Kafka, do psicologismo brutal de Joyce ou do enfoque microscópico de Virginia Woolf, ou ainda da transversalidade temporal de Faulkner. Pode­‑se. Clarice, porém, fica para além das leituras que tenha feito, revelando uma originalidade pessoal tão intensa quanto cada um dos outros autores isoladamente a revelou também. Singularidade que teria levado a que já na adolescência Clarice escrevesse contos que começavam naturalmen­te por “Era uma vez…” para logo interromper e terminar — “… Meu Deus.”

Ao Vergílio Ferreira, que me deu a conhecer Clarice.

Lisboa, 26 de Novembro de 1989

LÍDIA JORGE»

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