10.6.20

De O Separar das Águas e Outras Novelas, de Hélia Correia




«Como todas as vilas recolhidas, afastadas das grandes capitais, as notícias chegavam a Vilerma tardiamente e muito acrescentadas. A Revolução Russa e o milagre de Fátima vieram a um tempo, entrelaçados, como formas visíveis do tremendo combate de Deus e do Diabo, que arrastava consigo a perdição do mundo.
O padre Benjamim, subitamente pálido, apoiava no ventre, sobre o lado direito, a mão consoladora. Queixava‐se do fígado e o vinho da missa tornara‐se‐lhe amargo.
Andava assoberbado de trabalho, com novenas e preces, mortes e confissões. Uma gripe maligna e a tuberculose cavalgavam nas vilas, exterminavam. Demonstrando alguns restos de decência, preferiam, na escolha, os casebres dos pobres, o que tornava breves as cerimónias de enterro e indignava apenas os fazedores de campas luxuosas, com mármore e doirados e mãos vindas do chão a segurar nas jarras de alabastro.
O milagre de Fátima deixara o padre Benjamim perplexo. Dera em falar sozinho e em vomitar. Escrevera para Lisboa, pedindo informações, pormenores que lhe dessem alguma garantia. Mas, não tendo resposta, resignou‐se, supondo que até mesmo o cardeal estaria tão espantado como ele.
Secretamente, entrara‐lhe a inveja pelo corpo moído das insónias. Naquela vila branca e infecunda, ele sempre esperara qualquer coisa, um sinal que descesse da lua derretida ou mesmo uma criança que nascesse a declamar os salmos em latim, só um pequeno sopro perfumado que lhe ateasse as velas no altar. Enfim, uma qualquer divina distinção.» [pp. 13-14]

Hélia Correia recebeu o Prémio Camões em 2015. O Separar das Águas e Outras Novelas e outras obras de Hélia Correia estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/helia-correia/

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