29.7.19

Palavras ditas por Hélia Correia na entrega do Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB




«Muitas vezes se fez essa pergunta sobre se pode a literatura agir sobre as coisas reais. Alguma ela se esgotará, envelhecida, exausta de recursos. Pergunte-se o contrário e já se sabe o conteúdo da resposta: pode o real agir sobre o literário? É um dado adquirido que a vida entra no livro e o modifica, isto é, lhe dita o modo, a forma de existir. Grande parte do estudo literário é sociológico. Mas a palavra «modificar» aplica-se comummente no sentido de provocar uma mudança, significando, quanto à obra de arte, uma intrusão, uma vontade de intervenção no próprio conteúdo.
Conheci a censura. Mas, não tendo gosto pelas memórias ressentidas, só muito raramente falo dela. Ainda há pouco toquei nesse terror quando reli Os Demónios – não Os Possessos – na tradução do António Pescada, a quem tão grata sou por me ter permitido ler sem desconfiança os meus romances russos. Está nele incluído o capítulo que Dostoievski se viu forçado a retirar aquando da publicação. Escreveu um outro, totalmente diferente. E a chave do enigma respeitante à personagem principal caiu no lodo. «Que nunca mais, que nunca mais isto aconteça», é o voto que faz qualquer leitor. E, no entanto, está a acontecer.
Não pela força de um poder instituído e frequentemente muito estúpido, mas pela força de um poder massificado, igualmente estúpido, igualmente autorizado por um puritanismo executório. É uma polícia da opinião que não parece imposta e que se aloja no interior de cada um para desencorajar a ousadia, sendo que a ousadia não está hoje na infantil libertinagem sexual e sim no dar palavra e dar figura ao que o homem e a natureza têm de terrível, de necessário, de indomesticável. Dar a palavra ao que é inominável, afrontar o tabu, eis a tarefa. Não podemos deixar que uma cruzada de higienização se estenda à arte.
Ainda há poucos meses, em Paris, Philippe Brunet, um helenista conceituadíssimo, diretor da companhia de teatro antigo Demodocos, que atua sobretudo no domínio académico, preparou para a Sorbonne uma encenação das Suplicantes de Ésquilo. Esta peça tem vindo a ganhar nova vida graças ao tema dos refugiados que hoje domina o nosso pensamento e o nosso desespero de pensar. Na dita encenação, as Danaides, fugidas do Egipto, usariam as máscaras de acordo com o cânone cénico da tragédia grega. Usariam máscaras negras para caracterizarem mulheres muito tisnadas pelo sol. Elas pedem asilo a Pelasgos, rei de Argos, invocando ascendência comum, pelo que se infere que a diferença racial não é profunda entre elas e os argivos.
Não houve estreia. A peça foi alvo de boicote por parte de um grupo de ativistas, o «Cran» que lançou a campanha «Stop blackface» e encontrou no uso de uma máscara negra resquícios da prática «racialista», assim lhe chamam, de se pintarem atores brancos com cor preta, a fim de desempenharem papéis caricaturais e assim ridicularizarem a raça negra. 
A ameaça da ignorância muda de face mas não muda de maldade. A maldade benzida que extermina, essa maldade medieval que ainda opera noutros países da contemporaneidade, pouco difere desta maldade nova e aparentemente redentora que visa erradicar das histórias infantis tudo o que possa criar medo ou erros de julgamento ( quando basta ler Bettelheim para as aceitar na fixidez da sua tradição) e que acusa uma encenação das Suplicantes de racismo, equiparando a máscara à graxa de sapatos.
Tal como o outro, este censor é um verme para passa para dentro da pele e decompõe a nossa liberdade natural. Mas, quanto a este, cabe a cada corpo social, ao indivíduo e ao grupo defenderem-se, num estado que não é de resistência, a nobre resistência da clandestinidade – mas de guerra. Guerra de rosto descoberto, guerra altiva. Porque ela, a ignorância, já calçou as botas para a parada.

Perdoem, mas eu tenho de lá ir. Eu tenho sempre de lá ir. São eles, os Gregos, quem me dá socorro. Tenho de ir, na sequência desta indignação a que pretendi dar um tom de aviso. Que tempo é este, que pressão é esta em que a tragédia grega é proibida por um grupo social aparentemente bem-intencionado, movido por rigores anti esclavagistas? Como pode ignorar-se tudo aquilo – a começar pela palavra Xénos – que os Gregos descobriram para eles próprios e ensinaram a quem quis aprender?

Esta palavra Xénos, que veio a significar estrangeiro, forasteiro, tinha a conotação primeira de «hóspede». É hóspede o que chega a uma terra, a uma casa, no decurso da viagem. Um dos epítetos de Zeus é Xénios, protetor dos visitantes e vingador dos maus tratos exercidos sobre estrangeiros. A Xenía é um dos mais antigos conceitos da civilização ocidental. Ele é, ao mesmo tempo, teológico, ritual, espiritual e pragmático. É à Ilíada e à Odisseia que vão buscar-se exemplos da extrema cortesia para com os visitantes e dos laços sagrados que se tecem entre o anfitrião e o visitante, laços que obrigam mesmo as gerações vindouras. À vista do forasteiro, o dono do lugar avança a recebê-lo, oferece-lhe um banquete, convida-o ao descanso. Só depois lhe pergunta o nome e pede um relato biográfico pois, sendo grego, não dispensa as narrativas.» [Hélia Correia, Lisboa, 22 de Julho de 2019]

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