«É uma memória para indagar acerca da misteriosa questão de como o passado se transforma em passado, a pergunta que atravessa o mais recente livro do escritor irlandês John Banville, Retalhos do Tempo, Um Memorial de Dublin, que a Relógio d’Água publica agora na sua colecção de viagens. Esta é uma viagem à volta da identidade, umas memórias escritas numa forma que desafia o género enquanto o questiona e se questiona a si na vida. No livro, Banville vai atrás da cidade do passado como quem se procura nela e, ao formular o enunciado “Quem foi?”, tenta chegar à reposta a outra pergunta: quem é? O que é que os edifícios que vê, os jardins e as ruas por onde continua a caminhar, a água que corre nos canais em direcção ao rio Shanon lhe devolvem sobre si? Evocando Proust, Banville procura na cidade perdida um tempo perdido e constrói um livro de memórias singular onde o protagonista — o próprio Banville — quase se apaga, aparecendo episodicamente, muitas vezes de modo quase fantasmagórico, na história da sua relação com aquela paisagem urbana. (…)
São pouco mais de 200 páginas, pontuadas por fotografias, quase todas a preto e branco, da autoria de Paul Joyce. São quase todas imagens da cidade; Banville aparece apenas em três, e sempre de costas. Na primeira, olha o canal junto a uma árvore. Chapéu na cabeça, mãos nos bolsos. Talvez seja Primavera. A roupa é leve e as copas de todas as árvores em volta estão repletas de folhas. “Imagino que todos possuamos um lugar especial que constitua uma espécie de paraíso privativo, o Céu para onde gostaríamos de ir depois da morte, se é que temos de ir para algum lugar. Para mim, aquele trecho de água plácida e juncos rumorejantes, com o caminho de sirga ocre-escuro que vai desde a Baggot Street até à Lower Mount Street, é a paisagem mais encantadora que conheço”, escreve Banville, confessando logo no início que Dublin nunca lhe pertenceu.» [Isabel Lucas, Público, ípsilon, 1-9-2017]
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