Comemora-se a
10 de Dezembro a Hora Clarice, que celebra, a propósito da data do seu
nascimento, a obra da escritora Clarice Lispector, através de debates, leituras
e lançamentos.
A Relógio
D’Água participa na iniciativa com a publicação do conto «Mistério em São
Cristóvão», incluído no volume Todos os Contos, editado em Março de
2016.
A Relógio
D’Água publicou em Portugal a maior parte da obra da autora: Onde Estivestes
de Noite; Laços de Família; A Hora da Estrela; Uma Aprendizagem ou O Livro dos
Prazeres; A Paixão segundo G. H.; Perto do Coração Selvagem; A Maçã no Escuro;
Contos Reunidos; A Cidade Sitiada; Água Viva; O Lustre; A Vida Íntima de Laura;
A Mulher Que Matou os Peixes; Um Sopro de Vida (Pulsações); O Mistério do Coelho
Pensante; A Descoberta do Mundo e Todos os Contos.
«MISTÉRIO EM
SÃO CRISTÓVÃO
Numa noite de
maio — os jacintos rígidos perto da vidraça — a sala de jantar de uma casa
estava iluminada e tranquila.
Ao redor da
mesa, por um instante imobilizados, achavam-se o pai, a mãe, a avó, três
crianças e uma mocinha magra de dezanove anos. O sereno perfumado de São
Cristóvão não era perigoso, mas o modo como as pessoas se agrupavam no interior
da casa tornava arriscado o que não fosse o seio de uma família numa noite
fresca de maio. Nada havia de especial na reunião: acabara-se de jantar e
conversava-se ao redor da mesa, os mosquitos em torno da luz. O que tornava
particularmente abastada a cena, e tão desabrochado o rosto de cada pessoa, é
que depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso nessa família:
pois numa noite de maio, após o jantar, eis que as crianças têm ido diariamente
à escola, o pai mantém os negócios, a mãe trabalhou durante anos nos partos e
na casa, a mocinha está se equilibrando na delicadeza de sua idade, e a avó
atingiu um estado. Sem se dar conta, a família fitava a sala feliz, vigiando o
raro instante de maio e sua abundância.
Depois cada um
foi para o seu quarto. A velha estendeu-se gemendo com benevolência. O pai e a
mãe, fechadas todas as portas, deitaram-se pensativos e adormeceram. As três
crianças, escolhendo as posições mais difíceis, adormeceram em três camas como
em três trapézios. A mocinha, na sua camisola de algodão, abriu a janela do
quarto e respirou todo o jardim com insatisfação e felicidade. Perturbada pela
humidade cheirosa, deitou-se prometendo-se para o dia seguinte uma atitude
inteiramente nova que abalasse os jacintos e fizesse as frutas estremecerem nos
ramos — no meio de sua meditação adormeceu.
Passaram-se horas.
E quando o silêncio piscava nos vaga-lumes — as crianças penduradas no sono, a
avó ruminando um sonho difícil, os pais cansados, a mocinha adormecida no meio
de sua meditação — abriu-se a casa de uma esquina e dela saíram três
mascarados.
Um era alto e
tinha a cabeça de um galo. Outro era gordo e vestira-se de touro. E o terceiro,
mais novo, por falta de ideias, disfarçara-se em cavalheiro antigo e pusera
máscara de demónio, através da qual surgiam seus olhos cândidos. Os três
mascarados atravessaram a rua em silêncio.
Quando
passaram pela casa escura da família, aquele que era um galo e tinha quase
todas as ideias do grupo parou e disse:
— Olha só.
Os
companheiros, tornados pacientes pela tortura da máscara, olharam e viram uma
casa e um jardim. Sentindo-se elegantes e miseráveis, esperaram resignados que
o outro completasse o pensamento. Afinal o galo acrescentou:
— Podemos
colher jacintos.
Os outros dois
não responderam. Aproveitaram a parada para se examinar desolados e procurar um
meio de respirar melhor dentro da máscara.
— Um jacinto
para cada um pregar na fantasia, concluiu o galo.
O touro agitou-se
inquieto à ideia de mais um enfeite a ter que proteger na festa. Mas, passado
um instante em que os três pareciam pensar profundamente para resolver, sem que
na verdade pensassem em coisa alguma — o galo adiantou-se, subiu ágil pela
grade e pisou na terra proibida do jardim. O touro seguiu-o com dificuldade. O terceiro,
apesar de hesitante, num só pulo achou-se no próprio centro dos jacintos, com
um baque amortecido que fez os três aguardarem assustados: sem respirar, o
galo, o touro e o cavalheiro do diabo perscrutaram o escuro. Mas a casa
continuava entre trevas e sapos. E, no jardim sufocado de perfume, os jacintos
estremeciam imunes.
Então, o galo
avançou. Poderia colher o jacinto que estava à sua mão. Os maiores, porém, que
se erguiam perto de uma janela — altos, duros, frágeis — cintilavam chamando-o.
Para lá o galo se dirigiu na ponta dos pés, e o touro e o cavalheiro
acompanharam-no. O silêncio os vigiava.
Mal porém
quebrara a haste do jacinto maior, o galo interrompeu-se gelado. Os dois outros
pararam num suspiro que os mergulhou em sono.
Atrás do vidro
escuro da janela estava um rosto branco olhando-os.
O galo
imobilizara-se no gesto de quebrar o jacinto. O touro quedara-se de mãos ainda erguidas.
O cavalheiro, exangue sob a máscara, rejuvenescera até encontrar a infância e o
seu horror. O rosto atrás da janela olhava.
Nenhum dos
quatro saberia quem era o castigo do outro. Os jacintos cada vez mais brancos
na escuridão. Paralisados, eles se espiavam.
A simples
aproximação de quatro máscaras na noite de maio parecia ter percutido ocos
recintos, e mais outros, e mais outros que, sem o instante no jardim, ficariam
para sempre nesse perfume que há no ar e na imanência de quatro naturezas que o
acaso indicara, assinalando hora e lugar — o mesmo acaso preciso de uma estrela
cadente. Os quatro, vindos da realidade, haviam caído nas possibilidades que
tem uma noite de maio em São Cristóvão. Cada planta húmida, cada seixo, os
sapos roucos aproveitavam a silenciosa confusão para se disporem em melhor
lugar — tudo no escuro era muda aproximação. Caídos na cilada, eles se olhavam aterrorizados:
fora saltada a natureza das coisas e as quatro figuras se espiavam de asas
abertas. Um galo, um touro, o demónio e um rosto de moça haviam desatado a
maravilha do jardim… Foi quando a grande lua de maio apareceu.
Era um toque
perigoso para as quatro imagens. Tão arriscado que, sem um som, quatro mudas
visões recuaram sem se desfitarem, temendo que no momento em que não se
prendessem pelo olhar novos territórios distantes fossem feridos, e que, depois
da silenciosa derrocada, restassem apenas os jacintos — donos do tesouro do jardim.
Nenhum espectro viu o outro desaparecer porque todos se retiraram ao mesmo
tempo, vagarosos, na ponta dos pés. Mal, porém, se quebrara o círculo mágico de
quatro, livres da vigilância mútua, a constelação se desfez com terror: três
vultos pularam como gatos as grades do jardim, e um outro, arrepiado e
engrandecido, afastou-se
de costas até o limiar de uma porta, de onde, num grito, se pôs a correr.
Os três
cavalheiros mascarados que, por ideia funesta do galo, pretendiam fazer uma
surpresa num baile tão longe do Carnaval, foram um triunfo no meio da festa já
começada. A música interrompeu-se
e os dançarinos ainda enlaçados, entre risos, viram três mascarados ofegantes
parar como indigentes à porta. Afinal, depois de várias tentativas, os
convidados tiveram que abandonar o desejo de torná-los os reis da festa porque, assustados, os três não se separavam:
um alto, um gordo e um jovem, um gordo, um jovem e um alto, desequilíbrio e
união, os rostos sem palavras embaixo de três máscaras que vacilavam
independentes.
Enquanto isso,
a casa dos jacintos iluminara-se
toda. A mocinha estava sentada na sala. A avó, com os cabelos brancos
entrançados, segurava o copo d’água, a mãe alisava os cabelos escuros da filha,
enquanto o pai percorria a casa. A mocinha nada sabia explicar: parecia ter
dito tudo no grito. Seu rosto apequenara-se claro — toda a construção laboriosa de sua idade se
desfizera, ela era de novo uma menina. Mas na imagem rejuvenescida de mais de
uma época, para o horror da família, um fio branco aparecera entre os cabelos
da fronte. Como persistisse em olhar em direção da janela, deixaram-na sentada a repousar, e,
com castiçais na mão, estremecendo de frio nas camisolas, saíram em expedição
pelo jardim.
Em breve as
velas se espalhavam dançando na escuridão. Heras aclaradas se encolhiam, os
sapos saltavam iluminados entre os pés, frutos se douravam por um instante
entre as folhas. O jardim, despertado no sonho, ora se engrandecia ora se
extinguia; borboletas voavam sonâmbulas. Finalmente a velha, boa conhecedora
dos canteiros, apontou o único sinal visível no jardim que se esquivava: o jacinto
ainda vivo quebrado no talo… Então era verdade: alguma coisa sucedera.
Voltaram, iluminaram a casa toda e passaram o resto da noite a esperar.
Só as três
crianças dormiam ainda mais profundamente.
A mocinha aos poucos
recuperou sua verdadeira idade. Somente ela não vivia a perscrutar. Mas os
outros, que nada tinham visto, tornaram-se atentos e inquietos. E como o progresso naquela família
era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras, tudo se desfez e
teve que se refazer quase do princípio: a avó, de novo pronta a se ofender, o
pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis, toda a casa parecendo esperar
que mais uma vez a brisa da abastança soprasse depois de um jantar. O que
sucederia talvez noutra noite de maio.»
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