Quase todos os editores têm na sala onde trabalham uma estante repleta para onde relanceiam às vezes um olhar inquieto. São as traduções «encalhadas» à espera de uma revisão que as torne publicáveis.
Resultaram de pedidos feitos a embaixadas para indicarem tradutores do sueco, japonês ou persa e que, apesar dos muitos anos no nosso país, produziram textos num português tão fluente como o dos manuais de aspiradores chineses.
Mas mesmo quando se teve a precaução de pedir a tradução a alguém que tem o português como língua materna, há catástrofes difíceis de corrigir, traduções do inglês, francês, castelhano ou alemão que passam ao lado, em que onde devia surgir «pálido» está «esbatido» e «furtivo» é confundido com «esquivo». E há também expressões idiomáticas tomadas à letra e alguém desastrado (fingers and thumbs) surge «inesperadamente» como tendo «dedos e polegares».
Encontrar um tradutor que tenha, para usar a expressão de Umberto Eco, uma «apaixonada cumplicidade» com o livro que traduz, é quase tão importante como descobrir um novo autor. E mais raro, já que os escritores vêm de qualquer parte do mundo e é difícil encontrar um bom tradutor que não tenha a língua materna como «língua de chegada» (embora não impossível, como o mostram as obras em inglês do russo Nabokov e do polaco Conrad).
Transportar água nas mãos
A tradução entre duas línguas naturais – falamos aqui apenas da literária – consiste em reproduzir um dado efeito emocional e intelectual, através de símbolos de uma outra língua. É, como diz Octavio Paz, «a arte da analogia, a arte das correspondências».
Como se pode constatar, usando um programa de tradução automática de português para alemão e desta língua de novo para a nossa, é um processo que nada tem de mecânico. Podemos fazer o teste com o início de Húmus ou um fragmento do Livro do Desassossego que o resultado é o mesmo, a incongruência. O dicionário e mesmo a enciclopédia são apenas pontos de partida, sendo decisivos a capacidade de contextualizar enunciados, o domínio da semântica e da sintaxe, a cultura geral e a inteligência no entendimento dos sentidos.
A tradução literária é, para usar uma metáfora que ouvi a Hélia Correia, como transportar água nas mãos em concha de um lugar para o outro. Por mais que se estreitem os dedos, perde-se sempre alguma coisa (as traduções que melhoram o original como as de Hölderlin, Rilke, Celan ou Borges são excepcionais).
O essencial é, pois, reduzir as perdas, manter o leitor na ilusão de que quem escreveu aquelas palavras, foi o próprio autor que provavelmente desconhece a língua. Na verdade, quem escreveu o D. Quixote que publicámos foi José Bento – e, no entanto, ao lê-lo, temos a sensação de estar debruçados sobre um texto escrito por Cervantes. O mesmo se poderia dizer de Em Busca do Tempo Perdido na tradução de Pedro Tamen, ou da Ilíada e Odisseia que Frederico Lourenço traduziu.
Para tornar possível esta convenção tacitamente aceite pelo leitor, essa «suspensão voluntária da incredulidade» de que falava Coleridge em relação à ficção, é necessário que os tradutores conheçam a estrutura interna da língua de partida, tenham um completo domínio do português e conheçam o estilo do autor de modo a poderem elaborar um duplo do texto original. Só assim é possível recriar a linguagem e o humor seiscentista de Cervantes, manter a sensação de nostalgia nas longas frases de Proust e ouvir, nos versos de Homero, o estrépito dos combates travados pela conquista de Tróia e o ardiloso regresso de Ulisses a Ítaca.
Ora em Portugal, apesar da crescente necessidade de tradutores criada pela integração europeia e a globalização, não se verifica ainda uma aprendizagem significativa de línguas como o mandarim, o hindu, o russo, o árabe, o japonês, o turco, o finlandês ou o sueco.
Mas até nas línguas ensinadas há problemas.
Tudo começa no ensino
Muitos candidatos a tradutores saídos das faculdades de letras ou dos mestrados do ISLA, dominam razoavelmente o inglês, castelhano, francês ou alemão. Conhecem também, em geral, as diferentes concepções sobre tradução, dos textos de S. Jerónimo ao Dizer Quase a Mesma Coisa de Umberto Eco, passando pelas teses sobre essa «fala pura» que subjaz às línguas de Walter Benjamin, a Paixão Crítica de Octavio Paz e o Depois de Babel de Steiner (há ainda contributos de Schleiermacher, Ortega, Nabokov, Hermann Broch e Javier Marías para aquilo que só forçando a nota se poderia designar por uma teoria da tradução). Muitas dessas ideias são importantes, sobretudo as daqueles que, mesmo sem experiência prática, são capazes de dar múltiplos exemplos como o poliglota Steiner ou que têm uma longa oficina de tradução como João Barrento e que é bem evidente em O Poço de Babel. E, por maioria de razão, é útil conhecer as concepções dos que não apenas traduziram, como Walter Benjamin, mas acompanharam, como Umberto Eco, o trajecto dos seus livros nas mais diversas línguas negociando as inevitáveis perdas e definindo limites interpretativos.
A verdade, porém, é que, apesar desse conhecimento das línguas de partida e do domínio das mais diversas experiências, são raros os bons tradutores de literatura mesmo do inglês, castelhano, italiano e francês.
É que no nosso ensino, os alunos não têm de ler vários livros por mês desde o básico, nem de escrever textos mais tarde discutidos, nem de estudar os clássicos portugueses. E só isso poderia assegurar um adequado domínio das possibilidades expressivas da língua.
Dentro de alguns anos haverá inúmeros portugueses a escrever e falar o anglo-americano. Se deles surgir uma dezena de bons tradutores de Jane Austen ou Cormac McCarthy seria excelente.
É também significativo que, apesar de ter havido milhares de portugueses que estudaram na URSS ou na Alemanha, tenhamos apenas três ou quatro tradutores de russo e meia dúzia de bons tradutores do alemão.
Uma actividade mal paga?
Claro que, chegado aqui, qualquer candidato a tradutor pensará: «Muito bem. É preciso dominar pelo menos duas línguas, ter conhecimentos de semântica, de sintaxe e de estilo e mesmo uma “apaixonada cumplicidade” com o autor. E tudo isto por uns míseros euros por página?»
O trabalho do tradutor literário é de facto mal pago em termos absolutos, mas não em relação aos outros participantes na actividade editorial.
Vejamos o exemplo de um livro traduzido com 340 páginas (nas de tradução, com 1800 bites, serão cerca de 400) e que na livraria custa 15€, tendo uma tiragem de 2000 exemplares e vendendo 1500, o que são valores habituais.
O tradutor recebe por página, de 8€ (casos do inglês, castelhano, italiano ou do francês) a 12€ (russo e alemão), pelo que consideraremos o valor intermédio de 9€. Por cada exemplar vendido, as principais livrarias recebem 38 por cento, o distribuidor 22 por cento, o autor 8 por cento, o tradutor 16 por cento e o editor 16 por cento. Se a tiragem se esgotar, a percentagem do tradutor desce para 12 por cento. Mas é preciso ter em conta que só o autor (no valor da «antecipação») e o tradutor recebem antes da edição e que este último é o único cujo pagamento não depende do número de exemplares vendidos (situação só alterada para certos clássicos no domínio público ou em casos de reedição). O editor e o distribuidor começam a receber pagamentos, em média, três meses após a edição.
Mesmo assim, é preciso que um bom tradutor goste de literatura para fazer dela o seu ganha pão. De outro modo é preferível financeiramente voltar-se para as instituições comunitárias ou nacionais e as revistas técnicas – embora, é claro, existam romances tão áridos como as estatísticas da produção leiteira na Polónia, brilhantes como os catálogos da Gulbenkian e intrincados como as performances de um automóvel.
Um trabalho criativo
Problema diferente é o de reconhecimento do papel dos tradutores, cuja associação, a APT, tem um funcionamento intermitente. Embora sejam equiparados a autores na legislação e os seus nomes figurarem nas páginas de rosto e por vezes nas capas dos livros, vêem poucas vezes analisado o seu trabalho. Ainda é frequente, nas críticas e recensões, não ser sequer mencionado o nome do tradutor. E, no entanto, sem eles não poderíamos ter lido Shakespeare, Cervantes, Tolstói, Rilke, Musil ou Faulkner na nossa língua. Benjamin, Octavio Paz e Steiner consideraram mesmo a tradução algo de muito semelhante à criação literária (Steiner abençoa mesmo a Torre de Babel, por ter multiplicado as línguas e por isso os modos de sentir, embora considere que todo o movimento de significados, até a mais banal das conversas, implica um acto de tradução).
E é também sabido que as línguas inglesa, alemã e francesa foram moldadas pelas traduções da Bíblia feitas por Tyndale, Lutero e Calvino.
Como escreveu Javier Marías: «O tradutor, ao enfrentar a sua tarefa, sente o texto original como uma ausência. O que conta para ele e para o seu trabalho é a ausência desse texto na sua língua, na chamada língua de recepção, e por isso no sistema de pensamento dessa língua. O tradutor não reproduz, não copia, não decalca (…). Plasma sempre pela primeira vez uma experiência única, irrepetível e intransferível; cria na sua língua aquilo que na sua cabeça está noutra língua.»
Francisco Vale