A Vida Difícil dos Bons Livros
António Guerreiro é um jornalista atento. Sem o seu trabalho muitas obras de poesia ou de ciências sociais seriam injustamente ignoradas.
E, no entanto, o seu artigo publicado no Expresso de 1 de Maio, sobre a vida editorial, é redutor ao atribuir a factores como o excesso de produção e à comercialização livreira a responsabilidade principal pelas ameaças à «sobrevivência de espécies bibliográficas» e à sua «diversidade».
O excesso de produção só pode ser um fenómeno conjuntural sem consequências a longo prazo. E o problema de «diversidade» no sector é o mesmo que existe para certos vírus, ou seja, a diversidade até tem aumentado mas criando espécies indesejáveis – o «vampirismo casto», os variados dragões, o realismo urbano imediatista, o género «estrelas televisivas», etc.
Por outro lado, o comércio livreiro não tem o poder de inflectir duravelmente a procura dos leitores e uma prova disso é que, quando uma delas, com uma área razoável num local central, expõe apenas «livros de referência», acaba em falência inglória. O caso de «O Navio de Espelhos» é disso exemplo.
A razão principal para as melhores estantes das livrarias não estarem ocupadas por «bons livros», resulta de um processo em que confluem tendências sociais e culturais de que são responsáveis específicos o sistema de ensino, os media, os editores, os jornalistas, os autores e os livreiros.
Tendo como pano de fundo uma reprodutibilidade técnica que subtraiu às obras de arte a aura da sua «distante proximidade», a massificação de ensino e uma vida urbana que retira vagar e silêncio à leitura, verifica-se a apropriação por parte da sociedade do divertimento de um meio cultural prestigiado como o livro – hoje há editoras especializadas em publicar figuras televisivas com audiências garantidas em prime time, juntando-lhe um ou outro escritor «sério» nada preocupado com a companhia.
Este processo é comum à generalidade dos países e levou à criação de um público em que a maioria prefere Paulo Coelho, Dan Brown ou Stephenie Meyer a Kafka, Cormac McCarthy ou mesmo Philip Roth. É o surgimento, entre os leitores, de uma maioria que prefere livros apenas de divertimento que está na origem da situação actual.
Em Portugal pesa ainda o facto de se ter mudado de uma sociedade quase iletrada para uma outra herteziana e digital, passando por cima da «Galáxia de Gutenberg». Isso sucedeu devido à fragilidade da nossa revolução industrial, que dispensou certas formas de literacia e conduziu de uma economia ruralizada para a actual sociedade de serviços.
Mas mesmo antes de chegarmos às «culpas» específicas do sector como as dos escritores, livreiros e editores, devemos falar dos media, onde se reduzem os espaços destinados aos livros e é quase impossível encontrar um jornalista especializado em divulgação científica. Poderíamos citar dezenas de obras de «ciências duras» e «sociais» de referência que não tiveram um segundo de atenção nos media portugueses.
Por outro lado, o sistema de ensino desencoraja a leitura e a escrita, ou seja, não cria públicos para os géneros referidos – e também para o teatro, poesia e artes plásticas.
As Responsabilidades no Sector
É evidente que a «fuga em frente» do excesso de produção de alguns editores leva a que livros de qualidade fiquem submersos nas estantes das livrarias que tendem por isso a encurtar os «prazos de devolução». Há mesmo grupos editoriais que praticam deliberadamente esse excesso de produção para asfixiar concorrentes. Mas como referimos isso não suprime as «obras de referência» nem tem efeitos estruturais como os referidos por António Guerreiro.
Por sua vez, os livreiros tentam impor condições que dificultam a vida às editoras mais exigentes, aumentando as margens, exigindo um pagamento de espaços nas suas brochuras duas vezes mais caro que na New Yorker e procedendo às devoluções num prazo que não permite que a crítica possa ter efeito nas vendas. Isso contribui para a brilhante monotonia dos seus expositores.
Como, apesar de tudo, já existe um público para obras de qualidade, os livreiros poderiam retirar os «bons livros» dos esconsos, especializar-se em certas áreas, ou vender fundos em lojas amplas na periferia onde as rendas são mais acessíveis evitando naufrágios como a da Byblos. Os livreiros são ainda responsáveis pelo facto de qualquer «livro televisivo» ter assegurado uma centena das suas melhores montras, independentemente do que lá venha escrito – só isso explica que «o livro mais esperado do ano» possa ter uma autora sem «antecedentes» na escrita.
Mas se as livrarias ajudam ao eclipse dos «livros de referência», a verdade é que são sobretudo a sua expressão visível no final de um processo.
Afinal quem publica os maus livros são os editores e quem faz as capas com letras douradas em relevo são os designers. E são autores os que escrevem essas obras e aprovam essas capas. E tudo isso porque há leitores que os procuram.
Francisco Vale