29.4.19

Sobre Léxico Familiar, de Natalia Ginzburg




«Todos comungamos de uma mesma tradição oral – sejam os mitos coletivos, o idioma partilhado ou as mais modestas histórias de família. A escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) elevou estas últimas à condição de matéria-prima capaz de desenrolar tanto os fios da petite histoire como da História coletiva. Léxico Familiar é uma pérola que faz rir e chorar, e que cria ressonâncias nos leitores, mesmo que estes não tenham as mesmas memórias: ter quatro irmãos, uma família cheia de idiossincrasias, um contexto político como o da ascensão do fascismo e a Segunda Guerra Mundial, amizades com escritores como Cesare Pavese e Italo Calvino, um luto traumático... O primeiro marido de Natalia, o antifascista Leone Ginzburg, foi exilado na aldeia de Abruzzo, e, depois, preso, torturado (e crucificado), morrendo em 1944 na prisão. Mas é a vida e é a força redentora das palavras que triunfam neste relato intimista, em que até os nomes usados são os verdadeiros.
A novela avança transportada pelas frases, pelos bordões, desabafos, exclamações tragicómicas, saídas de cena, expressões favoritas, desabafos e disparates enunciados por todos os protagonistas da biografia de Ginzburg: o pai, citologista judeu, que disparava o insulto de “cafre” a tudo o que lhe desagradava; a mãe, católica e amante de ópera, que recitava poemas à mesa; a avó cativada pela maneira como o futuro marido dizia “côreio” amaciando os R; os tios, amigos, filhos, fantasmas... São retratos verbais, identitários, que ritmam a prosa como uma canção: “Essas frases são o nosso latim, o vocabulário dos tempos idos são, como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilónios, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive nos seus textos, salvos da fúria das águas, da corrosão do tempo.” Viver para contá-la, escolheu Gabriel García Márquez para batizar as suas memórias. Contar como se viveu, diria Natalia.» [Sílvia Souto Cunha, Visão, 15/4/2019]

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