8.3.21

Para acabar de vez com as livrarias

 


Os livros são coisa inútil. Já Pessoa dizia que não passam de papéis pintados com tinta, não constando que Jesus tivesse biblioteca.

Andou por isso bem o nosso clarividente Governo ao decretar o encerramento das livrarias por não venderem bens essenciais. Teve mesmo, com a ajuda do Presidente, um rasgo genial ao permitir a venda de livros nos supermercados para se poder constatar a diferença entre os corredores vazios das obras literárias e o alegre alvoroço em redor das prateleiras de iogurtes gregos, abacates e presuntos gourmet.

É claro que se fez ouvir o previsível coro de protestos de livreiros e editores que receiam pelos seus tranquilos e bem pagos empregos. O mesmo fizeram os escritores, para quem uma jornada típica de trabalho consiste, como muito bem notou certa vez Oscar Wilde, em colocarem uma vírgula de manhã para a retirarem ao fim da tarde.

Tremem à ideia de ter de ganhar honradamente a vida.

O nosso avisado Governo sabe bem o tempo que o país desperdiça a ler, embora nesse capítulo seja um dos que melhor está em toda a Europa (em quase nenhum sítio se lê menos). Mas mesmo assim perdem-se horas e dias que poderiam ser utilmente aplicadas a sugerir melhorias para o Plano de Recuperação e Resiliência, a seguir o avassalador campeonato do Sporting, a heróica epopeia da TAP e do novo aeroporto, ou a ouvir a ministra e a directora-geral da Saúde a manejar a evidência científica perante um vírus que parece apostado em esquivar-se a todas as suas previsões.

Em vez de acompanhar com orgulho o papel essencial de Portugal na condução semestral dos destinos europeus, há mesmo quem prefira as ociosas deambulações de Hans Castorp pela Montanha Mágica, as especulações metafísicas de Borges no Aleph, ou as inverosímeis metáforas do último romance de Lobo Antunes.

Além deste desperdício de tempo, há outro ainda mais grave; o do espaço. Em artigo recente, um dos nossos críticos expôs a sua nostalgia pelas livrarias de Lisboa, considerando que uma cidade com as livrarias fechadas há meses não se pode considerar uma verdadeira cidade.

Nada mais falso. Do que se trata é de aproveitar o impulso que o Governo deu com este encerramento para acelerar o processo de extinção das livrarias. Felizmente, muitas das invocadas pelo crítico, da Lácio à Bulhosa de Entrecampos, passando pela Escolar Editora, já mudaram de ramo, contribuindo agora para o desenvolvimento da cidade.

Na espaçosa Livraria Barata, no cruzamento da Avenida de Roma com a João XXI, não ficaria melhor um Pingo Doce, que pudesse fazer concorrência ao Continente que lhe fica ao lado? E a Ler Devagar, designação só por si ofensiva dos novos tempos, tem cascatas de estantes a escorrer ao longo das paredes, que dariam para armazenar milhares de pacotes urgentes da Amazon.

Mas o pior é a Bertrand do Chiado, entregue a uma letargia secular. Depois de uma enérgica desinfestação que eliminasse o cheiro a livros, poderia dedicar-se à venda de iPhones de última geração que encheriam as suas salas com um inebriante odor a Silicon Valley. Às suas paredes onde se encostaram em conversas ociosas Eça, Raul Brandão, Pessoa, Aquilino e outras antiguidades, poderiam um dia apoiar-se as T-shirts de Paddy Cosgrave ou mesmo, sabe-se lá, de um Zuckerberg em visita a Lisboa para uma qualquer Web Summit. 

Enfim, uma cidade com livrarias, que ainda por cima se limitam a vender livros, não é uma metrópole à altura das circunstâncias.

É certo que a França acaba de considerar os livros um bem de primeira necessidade em tempo de pandemia. Mas isso é apenas uma prova adicional da irreversível decadência gaulesa. O contraste é evidente com essa vanguarda civilizacional que é a China de Xi Jinping, onde livreiros de Hong Kong desaparecem sem deixar rasto, talvez para que as autoridades possam investigar a existência no seu sangue de genes do Homem de Neanderthal ou mesmo do Australopithecus. 

Mas não são apenas os livreiros inconformistas de Hong Kong que acabam mal. 

O mesmo sucede em geral àqueles que pensam que os livros são um bem essencial e alimentam a nossa vida espiritual.

Vejam o que sucedeu a García Lorca. Disse certa vez, na inauguração da biblioteca na sua terra natal, que, “se tivesse fome e estivesse a mendigar na rua, não pediria um pão; pediria meio pão e um livro”. Acabou morto por fascistas mais dados a disparar à queima-roupa contra poetas do que a perder tempo e feitio em leituras.

Victor Hugo afirmou na Assembleia Constituinte de 1848 que “é precisamente quando a crise asfixia um país que se torna mais necessário o conhecimento e a educação dos jovens para evitar que a sociedade se precipite no abismo da ignorância”. Poucos anos depois conheceria o exílio.

Caso mais recente foi o de Fernando Assis Pacheco, que, numa manhã de finais de Novembro de 1995, diante da montra da Buchholz, devorava com um brilho nos olhos as novidades acabadas de chegar, preparando-se para dali sair dobrado ao peso do habitual saco de livros inúteis. Foi acometido de um ataque cardíaco.

Aqueles que falam dos livros como um alimento espiritual deveriam ser obrigados a jejuar uma semana tendo depois como almoço a leitura de A Piada Infinita de David Foster Wallace e a de Finnegans Wake de Joyce como sobremesa.



Francisco Vale, leitor e editor

Sem comentários:

Enviar um comentário