O prefácio de Raúl Ruiz à edição de Mistérios de Lisboa de Camilo Castelo Branco é talvez o último texto escrito pelo realizador chileno recentemente falecido.
Publicado em Outubro do ano passado, o texto aborda a concepção literária e cinematográfica de Raúl Ruiz. Publica-se a seguir um extracto desse prefácio.
«No Chile, no final dos anos 50, quando comecei a interessar-me pelo teatro e pelo cinema, os raros aspirantes a dramaturgos, e ainda menos a cineastas, éramos submetidos ao treino daquilo que se designava por «técnica de construção dramática». Em poucas semanas, professores vindos do Norte punham-nos a par das técnicas simples e eficazes que permitiam encenar histórias que interessavam a toda a gente. A história, diziam-nos, começa quando alguém em quem focalizamos a nossa atenção quer alguma coisa e luta para consegui-la (Guilherme Tell quer partir a maçã que o seu filho tem sobre a cabeça, e não a própria cabeça). Existe sempre nela risco, incerteza, peripécias submetidas ao destino da flecha que o herói vai atirar (de facto, ela encarna aqui literalmente a flecha narrativa, que deve servir de guia a toda e qualquer história).
Há crise, clímax e desenlace.
E depois felicidade ou tragédia.
Para os adolescentes que nós éramos naqueles tempos, a doxa peremptória do sistema narrativo americano era irrefutável. Mais tarde, o teatro épico de Brecht tentou fazer uma crítica (esmagadoramente dogmática) do chamado drama burguês, sem grandes resultados.
O teatro épico chegou e partiu sem alterar muito as coisas. Pelo contrário, o moderno drama americano veio para ficar. Eu, nem épico nem moderno, optei por refugiar-me na dramaturgia dos sonhos.
Mas, essa «toda a gente»? Esse cidadão comum? O homem anónimo, o obscuro contribuinte a quem se destinavam as histórias que íamos contar?
Bem, para esses havia os melodramas mexicanos, as novelas da televisão, o teatro radiofónico da tarde e da noite, de antes do pequeno-almoço.
Que contavam as histórias dos dramas populares?
Nada em particular e tudo em geral (ser feliz, o grande amor, fama imortal e coisas assim).»
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