Em entrevista concedida à LER de Setembro, Miguel Sousa Tavares reafirma que «escrever bem» é «escrever simples», dando como exemplos Tchékhov e Hemingway.
Confrontado pelo entrevistador, Carlos Vaz Marques, com as obras de Faulkner e Joyce, o autor de O Equador reconhece já ter feito três tentativas para ler Ulisses e sentir dificuldades com Faulkner.
MST diz ainda que para ele um romance «é uma história bem contada» e denuncia os críticos que consideram best-seller sinónimo de falta de qualidade.
Antes de mais uma «declaração de interesses».
Na década de 90, MST editou na RA um livro de crónicas (Nómada no Oásis), outro de viagens (Sul) e um conto juvenil (O Segredo do Rio).
Não tive grandes contactos pessoais com MST, apenas um encontro e algumas conversas telefónicas, mas fiquei com a melhor impressão do seu rigor e relação com os livros. Não quis fazer uma quarta edição de O Nómada no Oásis por alguns textos se terem desactualizado e, quando saiu da RA, preocupou-se que os exemplares de Sul se esgotassem mesmo após a vigência do contrato, evitando assim a destruição de exemplares.
Do seu ponto de vista, MST teve razões para deixar a RA. Após alguma hesitação eu decidira não querer ser um editor de grande dimensão, o que seria necessário para lhe fornecer as possibilidades de promoção a que legitimamente aspirava. Também não desejava voltar a atenção para um ou dois autores, contrariando o princípio de tratar todos de igual modo.
Considero MST um excelente cronista e repórter. Como jornalista escreve bem, é frontal, tem ironia e sabe do que fala.
Não acompanhei a sua carreira literária, o que nada tem a ver com o facto de ser feita de bestsellers. As referências que tive dos seus romances não me encorajaram a fazê-lo e, sobretudo, é escasso o tempo que tenho para ler as centenas de livros que nas estantes todos os dias me acusam de desatenção. Pergunto-me quando terei tempo de acabar Vida e Destino de Vasily Grossman, de ler As Metamorfoses de Ovídio, reler Os Sonâmbulos de Hermann Broch, A Guerra e Paz de Tolstói, ou O Capital de Marx, na edição da Plêiade e incluindo o capítulo inédito em que prevê o surgimento de uma classe média ligada aos serviços. Há meses que tenho sobre a mesa O Caminho para a Realidade de Roger Penrose, A Tábua Rasa de Steven Pinker, os três tomos de Ernest Jones sobre a vida e obra de Freud e os diversos volumes de Memórias de Além-Túmulo de Chateaubriand.
Ou seja, provavelmente nunca irei satisfazer a vaga curiosidade que tenho pela ficção de MST.
Não se trata, pois, de analisar os romances e o quase-romance de MST, nem sequer de perceber a relação que têm com as suas afirmações sobre literatura. Só estas me interessam, pois vêm de um autor acompanhado por muitos leitores portugueses.
Escrita simples
Também eu gosto de autores cujo estilo é a aparente ausência de estilo, como Stendhal, Tchékhov, Hemingway, Philip Roth, Alice Munro e muitos outros.
Mas o conceito de escrita simples nada tem de evidente. Será a escrita que evita o vocabulário, a sintaxe complicados e as metáforas demasiado subjectivas? Ou aquela que, além disso, surge associada ao contar de uma história com «princípio, meio e fim»?
Mas como considerar simples a escrita de A Metamorfose de Kafka, que é tudo isso e ao mesmo tempo pode ser interpretada como alegoria social, psicanalítica ou religiosa?
Estará a simplicidade associada a um universo ficcional realista? Mas, num certo sentido, Ulisses é realista – o próprio Joyce considerou ser possível reconstruir, a partir do seu livro, uma Dublin destruída por terramoto.
Será então essa simplicidade inseparável de uma interpretação imediata e da ausência de técnicas narrativas sofisticadas?
MST refere Tchékhov e Hemingway como exemplos.
Porém, os leitores que têm acesso a Tchékhov em russo sublinham o ritmo das suas frases e a sua beleza estética. E como considerar simples uma escrita que, num só parágrafo de As Três Irmãs, ou no conto A Senhora do Cãozinho insinua um carácter e um destino? E como atribuir simplicidade aos diálogos de Hemingway que fazem sempre avançar a acção e que em duas réplicas de As Neves de Kilimanjaro nos dá o exacto estado de uma relação amorosa?
É tão difícil construir uma obra ficcional com uma aparentemente escrita simples, como com outra mais elaborada, em que são evidentes vários níveis interpretativos, alusões míticas ou desdobramentos metafóricos.
E esta última também pode dar grande prazer, quer numa ficção ensaística como Um Homem Sem Qualidades, com uma forte carga estética como A Morte de Virgílio de Broch, ou com uma sucessão de metáforas que enredam mesmo o fio narrativo como em António Lobo Antunes. O mesmo se poderia dizer de obras repletas de referências míticas como Debaixo do Vulcão de Malcolm Lowry ou refulgentes de jogos de palavras e de alusões literárias como o Ulisses de Joyce ou Ada ou Ardor de Nabokov.
Ou seja, a escrita simples de um grande autor nunca é simplificada e as suas fronteiras com a escrita mais elaborada é literariamente irrelevante.
Claro que há leituras mais difíceis que outras. Um clássico é, por definição, um livro que nos desafia a todo o momento para novas interpretações e por isso pode ser redescoberto por sucessivas gerações e em diversos momentos da vida. Só li todo o Ulisses à terceira tentativa. Na primeira não passei do episódio do colégio, na segunda encalhei um pouco mais adiante e ainda me resta fazer uma outra completa que tenha em conta as referências iniciais à Odisseia e me permita escutar o eco das palavras do cego Homero nas deambulações de Leopold Bloom num certo 16 de Junho de Dublin.
Li Na Minha Morte e O Som e a Fúria de Faulkner à segunda tentativa e, no início dos anos 70, a minha velocidade pessoal esbarrou com a lentidão de início de Em Busca do Tempo Perdido que três anos mais tarde me pareceu deslumbrante.
Espanta-me que MST, que elogia a persistência e o mérito na educação e na vida profissional e conhece o difícil prazer de viajar no deserto, não aplique igual critério à leitura de romances como se aí valesse apenas colher os frutos da facilidade, ou seja, o abandono ao fascínio do texto.
Perante essas obras temos de ter a mesma atitude que Antonio Muñoz Molina revela na Babelia do El País de 15 de Agosto:
«Ulisses atraiu-me e derrotou-me várias vezes ao longo dos anos, desde que comprei nos distantes anos 70 a edição de volumes brancos da Lumen traduzida por José María Valverde. Um leitor tem de ser sincero consigo próprio e tal como não deve envaidecer-se com os cumes que conquistou, também não deve envergonhar-se dos seus fracassos nem esconder a sua capitulação diante de uma obra-prima.»
Os riscos
Não é preocupante a defesa que MST fez da escrita simples, pois se trata de um escritor, não de um crítico. O problema está em que a chamada «escrita simples», na sua versão simplificada, ou seja, sem espessura literária é a que mais facilmente passa para o cinema, a televisão e outros media de suporte cada vez mais digital. Muitas vezes são romances menores, como os de D’Anuzzio adaptados por Visconti, que dão excelentes filmes, pois pouco ou nada se perde na transposição em imagens. Em contraste, obras mais densas e inseparáveis da criação da individualidade europeia, como Moby Dick, Em Busca do Tempo Perdido, Debaixo do Vulcão, Montanha Mágica e Retrato de Uma Senhora são por vezes rotundos fracassos, mesmo com grandes realizadores. É por isso que o facto de contos e romances tenderem a ser cada vez mais fornecedores de conteúdos para grandes empresas multimédia, em que a edição de livros é uma reduzida parte do negócio, aumenta o risco de marginalização da literatura.
E esse risco é tanto maior quando são cada vez menos os leitores que têm o vagar de uma sombra de Verão para lerem os romances em que cada dificuldade vencida é uma descoberta.
Uma boa história
É evidente que MST privilegia a narrativa tradicional.
Também não tenho particular interesse pela literatura nas suas fases experimentais. Rumo ao Farol não é a obra que prefiro de Virginia Woolf e mesmo que o meu inglês me permitisse ler Finnegan’s Wake no original, não me parece obra de que gostasse a avaliar pelos fragmentos traduzidos por Haroldo de Campos. E o mesmo poderia dizer de outras obras escritas para serem interpretadas, como algumas de Pynchon e D. F. Wallace, embora nada defina melhor a mediocridade de uma obra do que a possibilidade de a esgotarmos numa primeira leitura.
Gosto de «policiais» que, mesmo nos períodos de voga da literatura não narrativa, mantêm o princípio do suspense e a criação de personagens.
Não partilho também a critica feita a romancistas contemporâneos, como Iris Murdoch, por se recusarem a registar nas suas obras as inovações de Joyce e Beckett.
Aprecio romances com enredo original e como Jorge Luis Borges disse a propósito de A Invenção de Morel de Adolfo Bioy Casares estamos longe de ter esgotado as histórias bem contadas. E ainda me lembro do deslumbramento que foi ler, nos anos 70, Cem Anos de Solidão.
E, no entanto, existem excelentes romances que não têm propriamente uma história – A Morte de Virgílio de Broch, alguns volumes de Em Busca do Tempo Perdido, Ulisses de Joyce, O Homem Sem Qualidades de Musil, Molloy de Beckett, Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa e muitos outros.
É também evidente que contar bem uma história tem muito que se lhe diga, sendo, de resto, conhecida a afirmação de Hemingway de que uma boa história está longe de ser a garantia de um bom livro.
Tolstói deu-nos em Guerra e Paz o melhor romance histórico de sempre, através de uma narrativa em mosaico que nada tem de linear e onde os acontecimentos históricos surgem através das relações dos personagens, exceptuando a parte final que é um assumido ensaio.
Confrontado pelo entrevistador, Carlos Vaz Marques, com as obras de Faulkner e Joyce, o autor de O Equador reconhece já ter feito três tentativas para ler Ulisses e sentir dificuldades com Faulkner.
MST diz ainda que para ele um romance «é uma história bem contada» e denuncia os críticos que consideram best-seller sinónimo de falta de qualidade.
Antes de mais uma «declaração de interesses».
Na década de 90, MST editou na RA um livro de crónicas (Nómada no Oásis), outro de viagens (Sul) e um conto juvenil (O Segredo do Rio).
Não tive grandes contactos pessoais com MST, apenas um encontro e algumas conversas telefónicas, mas fiquei com a melhor impressão do seu rigor e relação com os livros. Não quis fazer uma quarta edição de O Nómada no Oásis por alguns textos se terem desactualizado e, quando saiu da RA, preocupou-se que os exemplares de Sul se esgotassem mesmo após a vigência do contrato, evitando assim a destruição de exemplares.
Do seu ponto de vista, MST teve razões para deixar a RA. Após alguma hesitação eu decidira não querer ser um editor de grande dimensão, o que seria necessário para lhe fornecer as possibilidades de promoção a que legitimamente aspirava. Também não desejava voltar a atenção para um ou dois autores, contrariando o princípio de tratar todos de igual modo.
Considero MST um excelente cronista e repórter. Como jornalista escreve bem, é frontal, tem ironia e sabe do que fala.
Não acompanhei a sua carreira literária, o que nada tem a ver com o facto de ser feita de bestsellers. As referências que tive dos seus romances não me encorajaram a fazê-lo e, sobretudo, é escasso o tempo que tenho para ler as centenas de livros que nas estantes todos os dias me acusam de desatenção. Pergunto-me quando terei tempo de acabar Vida e Destino de Vasily Grossman, de ler As Metamorfoses de Ovídio, reler Os Sonâmbulos de Hermann Broch, A Guerra e Paz de Tolstói, ou O Capital de Marx, na edição da Plêiade e incluindo o capítulo inédito em que prevê o surgimento de uma classe média ligada aos serviços. Há meses que tenho sobre a mesa O Caminho para a Realidade de Roger Penrose, A Tábua Rasa de Steven Pinker, os três tomos de Ernest Jones sobre a vida e obra de Freud e os diversos volumes de Memórias de Além-Túmulo de Chateaubriand.
Ou seja, provavelmente nunca irei satisfazer a vaga curiosidade que tenho pela ficção de MST.
Não se trata, pois, de analisar os romances e o quase-romance de MST, nem sequer de perceber a relação que têm com as suas afirmações sobre literatura. Só estas me interessam, pois vêm de um autor acompanhado por muitos leitores portugueses.
Escrita simples
Também eu gosto de autores cujo estilo é a aparente ausência de estilo, como Stendhal, Tchékhov, Hemingway, Philip Roth, Alice Munro e muitos outros.
Mas o conceito de escrita simples nada tem de evidente. Será a escrita que evita o vocabulário, a sintaxe complicados e as metáforas demasiado subjectivas? Ou aquela que, além disso, surge associada ao contar de uma história com «princípio, meio e fim»?
Mas como considerar simples a escrita de A Metamorfose de Kafka, que é tudo isso e ao mesmo tempo pode ser interpretada como alegoria social, psicanalítica ou religiosa?
Estará a simplicidade associada a um universo ficcional realista? Mas, num certo sentido, Ulisses é realista – o próprio Joyce considerou ser possível reconstruir, a partir do seu livro, uma Dublin destruída por terramoto.
Será então essa simplicidade inseparável de uma interpretação imediata e da ausência de técnicas narrativas sofisticadas?
MST refere Tchékhov e Hemingway como exemplos.
Porém, os leitores que têm acesso a Tchékhov em russo sublinham o ritmo das suas frases e a sua beleza estética. E como considerar simples uma escrita que, num só parágrafo de As Três Irmãs, ou no conto A Senhora do Cãozinho insinua um carácter e um destino? E como atribuir simplicidade aos diálogos de Hemingway que fazem sempre avançar a acção e que em duas réplicas de As Neves de Kilimanjaro nos dá o exacto estado de uma relação amorosa?
É tão difícil construir uma obra ficcional com uma aparentemente escrita simples, como com outra mais elaborada, em que são evidentes vários níveis interpretativos, alusões míticas ou desdobramentos metafóricos.
E esta última também pode dar grande prazer, quer numa ficção ensaística como Um Homem Sem Qualidades, com uma forte carga estética como A Morte de Virgílio de Broch, ou com uma sucessão de metáforas que enredam mesmo o fio narrativo como em António Lobo Antunes. O mesmo se poderia dizer de obras repletas de referências míticas como Debaixo do Vulcão de Malcolm Lowry ou refulgentes de jogos de palavras e de alusões literárias como o Ulisses de Joyce ou Ada ou Ardor de Nabokov.
Ou seja, a escrita simples de um grande autor nunca é simplificada e as suas fronteiras com a escrita mais elaborada é literariamente irrelevante.
Claro que há leituras mais difíceis que outras. Um clássico é, por definição, um livro que nos desafia a todo o momento para novas interpretações e por isso pode ser redescoberto por sucessivas gerações e em diversos momentos da vida. Só li todo o Ulisses à terceira tentativa. Na primeira não passei do episódio do colégio, na segunda encalhei um pouco mais adiante e ainda me resta fazer uma outra completa que tenha em conta as referências iniciais à Odisseia e me permita escutar o eco das palavras do cego Homero nas deambulações de Leopold Bloom num certo 16 de Junho de Dublin.
Li Na Minha Morte e O Som e a Fúria de Faulkner à segunda tentativa e, no início dos anos 70, a minha velocidade pessoal esbarrou com a lentidão de início de Em Busca do Tempo Perdido que três anos mais tarde me pareceu deslumbrante.
Espanta-me que MST, que elogia a persistência e o mérito na educação e na vida profissional e conhece o difícil prazer de viajar no deserto, não aplique igual critério à leitura de romances como se aí valesse apenas colher os frutos da facilidade, ou seja, o abandono ao fascínio do texto.
Perante essas obras temos de ter a mesma atitude que Antonio Muñoz Molina revela na Babelia do El País de 15 de Agosto:
«Ulisses atraiu-me e derrotou-me várias vezes ao longo dos anos, desde que comprei nos distantes anos 70 a edição de volumes brancos da Lumen traduzida por José María Valverde. Um leitor tem de ser sincero consigo próprio e tal como não deve envaidecer-se com os cumes que conquistou, também não deve envergonhar-se dos seus fracassos nem esconder a sua capitulação diante de uma obra-prima.»
Os riscos
Não é preocupante a defesa que MST fez da escrita simples, pois se trata de um escritor, não de um crítico. O problema está em que a chamada «escrita simples», na sua versão simplificada, ou seja, sem espessura literária é a que mais facilmente passa para o cinema, a televisão e outros media de suporte cada vez mais digital. Muitas vezes são romances menores, como os de D’Anuzzio adaptados por Visconti, que dão excelentes filmes, pois pouco ou nada se perde na transposição em imagens. Em contraste, obras mais densas e inseparáveis da criação da individualidade europeia, como Moby Dick, Em Busca do Tempo Perdido, Debaixo do Vulcão, Montanha Mágica e Retrato de Uma Senhora são por vezes rotundos fracassos, mesmo com grandes realizadores. É por isso que o facto de contos e romances tenderem a ser cada vez mais fornecedores de conteúdos para grandes empresas multimédia, em que a edição de livros é uma reduzida parte do negócio, aumenta o risco de marginalização da literatura.
E esse risco é tanto maior quando são cada vez menos os leitores que têm o vagar de uma sombra de Verão para lerem os romances em que cada dificuldade vencida é uma descoberta.
Uma boa história
É evidente que MST privilegia a narrativa tradicional.
Também não tenho particular interesse pela literatura nas suas fases experimentais. Rumo ao Farol não é a obra que prefiro de Virginia Woolf e mesmo que o meu inglês me permitisse ler Finnegan’s Wake no original, não me parece obra de que gostasse a avaliar pelos fragmentos traduzidos por Haroldo de Campos. E o mesmo poderia dizer de outras obras escritas para serem interpretadas, como algumas de Pynchon e D. F. Wallace, embora nada defina melhor a mediocridade de uma obra do que a possibilidade de a esgotarmos numa primeira leitura.
Gosto de «policiais» que, mesmo nos períodos de voga da literatura não narrativa, mantêm o princípio do suspense e a criação de personagens.
Não partilho também a critica feita a romancistas contemporâneos, como Iris Murdoch, por se recusarem a registar nas suas obras as inovações de Joyce e Beckett.
Aprecio romances com enredo original e como Jorge Luis Borges disse a propósito de A Invenção de Morel de Adolfo Bioy Casares estamos longe de ter esgotado as histórias bem contadas. E ainda me lembro do deslumbramento que foi ler, nos anos 70, Cem Anos de Solidão.
E, no entanto, existem excelentes romances que não têm propriamente uma história – A Morte de Virgílio de Broch, alguns volumes de Em Busca do Tempo Perdido, Ulisses de Joyce, O Homem Sem Qualidades de Musil, Molloy de Beckett, Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa e muitos outros.
É também evidente que contar bem uma história tem muito que se lhe diga, sendo, de resto, conhecida a afirmação de Hemingway de que uma boa história está longe de ser a garantia de um bom livro.
Tolstói deu-nos em Guerra e Paz o melhor romance histórico de sempre, através de uma narrativa em mosaico que nada tem de linear e onde os acontecimentos históricos surgem através das relações dos personagens, exceptuando a parte final que é um assumido ensaio.
E o que é que fará de Madame Bovary de Flaubert e de Anna Karénina romances clássicos quando os seus enredos se podem resumir a vulgares casos de adultério?
Por que é que a bem contada história de O Primo Basílio do nosso melhor romancista, para não falar já de Alves & Companhia e de muitas outras histórias de adultério, não possui a força de Madame Bovary nem de Anna Karénina? Por que razão Ema e Anna são inesquecíveis, ao contrário do que sucede com Luísa, prima de Basílio?
Por que é que a bem contada história de O Primo Basílio do nosso melhor romancista, para não falar já de Alves & Companhia e de muitas outras histórias de adultério, não possui a força de Madame Bovary nem de Anna Karénina? Por que razão Ema e Anna são inesquecíveis, ao contrário do que sucede com Luísa, prima de Basílio?
É também um enigma que os dois principais romances sobre o incesto tenham histórias contadas do modo mais diverso. No caso de Os Maias, os protagonistas permanecem quase até ao fim ignorantes do carácter incestuoso da sua relação, enquanto em Ada ou Ardor de Nabokov, é com alegre deliberação que o realizam.
E é difícil explicar a razão de, para muitos jovens, o início de A Cartuxa de Parma prenunciar, para usar a expressão de Italo Calvino, «o mais belo romance do mundo».
Como entender o milenar interesse pela Ilíada e Odisseia, que no século V a. C. foram consideradas, em Corinto, depois de uma apresentação pública, como obras sem futuro e que não valeria a pena transcrever para pergaminho, pois eram longas, repetitivas e repletas de frases intermináveis?
Há capacidades expressivas difíceis de definir e que não são redutíveis ao «contar bem» uma história. Mas alguns grandes pintores renascentistas, que entregavam aos seus discípulos parte da obra e reservavam para si apenas alguns aspectos, tinham a intuição do que estava em causa.
Best-sellers e qualidade
MST denuncia, com razão, os críticos que identificam best-sellers com falta de qualidade. Trata-se, com frequência, de opiniões de jornalistas inseguros do seu estatuto de críticos ou de críticos inseguros do seu estatuto universitário.
Vender muito não quer dizer falta de qualidade, até porque pode haver diversos níveis de leitura e interpretação. Existem excelentes romances que vendem milhões de exemplares, como Anna Karénina, O Grande Gatsby, Memórias de Adriano, Cem Anos de Solidão e Lolita e mesmo outros, mais acessíveis, como O Mundo de Sofia, O Nome da Rosa ou a recente trilogia de Stieg Larsson, (influenciada, na criação de uma personagem como Lisbeth Salander, pelo cinema de Tarantino, que, por sua vez, acolhe possivelmente em Sacanas sem Lei e em relação aos nazis, a ideia que ela teve de marcar com uma tatuagem o tutor que a violou). Podemos quando muito dizer que, infelizmente, as fórmulas dos best-sellers sem qualidade, como os de Dan Brown ou de Stephenie Meyer, são mais facilmente reprodutíveis. Basta ver as sequelas de enredos esotéricos e de vampiros castos até ao casamento e depois bons pais de família.
Podemos também acrescentar que, quando um êxito de vendas de um romance não se explica pelas suas qualidades narrativas, ele fica a dever-se a razões sociológicas ou à persona pública do autor. É por isso que o irónico artigo de Rogério Casanova sobre os livros de Stephenie Meyer surgido no último Expresso tem algo de incompleto ao não arriscar uma explicação sobre as razões de êxito de uma saga de vampiros castos nos tempos que correm.
E claro vender pouco também nada quer dizer.
Temos o caso dos romances que levam décadas a ser descobertos – Eça vendeu muito menos no seu tempo que Bulhão Pato e este é hoje apenas conhecido por uma receita de amêijoas e como personagem de Os Maias.
A História Universal da Infâmia de J. L. Borges vendeu dezoito exemplares quando surgiu na Argentina e mesmo em tempos recentes obras como as de Cormac McCarthy e de Bolaño demoraram anos a ser reconhecidas.
Francisco Vale
E é difícil explicar a razão de, para muitos jovens, o início de A Cartuxa de Parma prenunciar, para usar a expressão de Italo Calvino, «o mais belo romance do mundo».
Como entender o milenar interesse pela Ilíada e Odisseia, que no século V a. C. foram consideradas, em Corinto, depois de uma apresentação pública, como obras sem futuro e que não valeria a pena transcrever para pergaminho, pois eram longas, repetitivas e repletas de frases intermináveis?
Há capacidades expressivas difíceis de definir e que não são redutíveis ao «contar bem» uma história. Mas alguns grandes pintores renascentistas, que entregavam aos seus discípulos parte da obra e reservavam para si apenas alguns aspectos, tinham a intuição do que estava em causa.
Best-sellers e qualidade
MST denuncia, com razão, os críticos que identificam best-sellers com falta de qualidade. Trata-se, com frequência, de opiniões de jornalistas inseguros do seu estatuto de críticos ou de críticos inseguros do seu estatuto universitário.
Vender muito não quer dizer falta de qualidade, até porque pode haver diversos níveis de leitura e interpretação. Existem excelentes romances que vendem milhões de exemplares, como Anna Karénina, O Grande Gatsby, Memórias de Adriano, Cem Anos de Solidão e Lolita e mesmo outros, mais acessíveis, como O Mundo de Sofia, O Nome da Rosa ou a recente trilogia de Stieg Larsson, (influenciada, na criação de uma personagem como Lisbeth Salander, pelo cinema de Tarantino, que, por sua vez, acolhe possivelmente em Sacanas sem Lei e em relação aos nazis, a ideia que ela teve de marcar com uma tatuagem o tutor que a violou). Podemos quando muito dizer que, infelizmente, as fórmulas dos best-sellers sem qualidade, como os de Dan Brown ou de Stephenie Meyer, são mais facilmente reprodutíveis. Basta ver as sequelas de enredos esotéricos e de vampiros castos até ao casamento e depois bons pais de família.
Podemos também acrescentar que, quando um êxito de vendas de um romance não se explica pelas suas qualidades narrativas, ele fica a dever-se a razões sociológicas ou à persona pública do autor. É por isso que o irónico artigo de Rogério Casanova sobre os livros de Stephenie Meyer surgido no último Expresso tem algo de incompleto ao não arriscar uma explicação sobre as razões de êxito de uma saga de vampiros castos nos tempos que correm.
E claro vender pouco também nada quer dizer.
Temos o caso dos romances que levam décadas a ser descobertos – Eça vendeu muito menos no seu tempo que Bulhão Pato e este é hoje apenas conhecido por uma receita de amêijoas e como personagem de Os Maias.
A História Universal da Infâmia de J. L. Borges vendeu dezoito exemplares quando surgiu na Argentina e mesmo em tempos recentes obras como as de Cormac McCarthy e de Bolaño demoraram anos a ser reconhecidas.
Francisco Vale
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