Morreu o editor Luís Oliveira
Um catálogo singular
Ser editor é viver uma realidade contraditória.
O catálogo que vai construindo é obra dos escritores que publica. Mas, no caso dos editores independentes, que não se inspiram nas vendas ou em sugestões de agentes literários, esse catálogo pode ser uma conjunção única, uma criação singular.
Por isso, qualquer editor tende a oscilar entre o zero e o infinito.
Por vezes, sente-se apenas como aquele que fornece os suportes para a divulgação dos livros, tendo o mérito das boas revisões, do grafismo bem feito, e, sendo caso disso, de uma tradução cuidada.
Nos acessos de megalomania, reclama para si quase todo o mérito, imagina que, sem os ter escolhido e publicado, os autores quase nem existiriam.
É certo que há escritores que permaneceriam esquecidos ou que não chegariam, pelo menos tão cedo, aos leitores portugueses sem o trabalho de Luís Oliveira. É o caso de Graça Pina de Morais, António José Forte, Tomás da Fonseca, Karl Korsch, Michael Herr, Frédéric Gros, Albert Cossery, Donald Barthelme, e dezenas de outros.
Mas a maioria dos trezentos e quarenta títulos da Antígona poderia ter chegado aos leitores através de outros editores. Quem não desejaria ter no seu catálogo as distopias de Orwell, Huxley e Zamiatine, ou criações de Blake, Sterne, La Boétie, John Berger, Jack London, Galeano, Saunders, Henry Miller ou Bukowski?
Não são pois apenas os autores considerados individualmente que fazem da Antígona a Antígona. Há um fio condutor que Luís Oliveira tem segurado ao longo de quatro décadas. É isso que faz com que todos os autores que publica sejam água da mesma corrente, diversa e que procura ser digna da audácia com que Antígona, mulher de Tebas, desafiou, em nome do sangue e da fraternidade, as leis da cidade, personificadas em Creonte.
O que há de singular no catálogo da Antígona é esta coerência, um leito por onde fluem as palavras e ideias dos mais diversos autores, que têm em comum a capacidade de nunca deixarem indiferentes os leitores.
Luís Oliveira contou com a colaboração de Torcato Sepúlveda, de João Henriques, José Miranda Justo, e outros colaboradores. Mas, mesmo eles, foram escolhidos tanto como escolheram e a sua ligação à Antígona surge como natural e até inevitável.
Na Antígona, é também visível, além da arte da aceitação, outra ainda mais difícil que é a de excluir. Não é um verdadeiro editor quem não for capaz de pôr em causa uma amizade por se recusar a publicar um livro que o não convenceu.
E Luís Oliveira soube erguer defesas contra a mediocridade ou as facilidades de venda. Evitou comprazer-se na edição marginal, enfrentou crises, situou-se, para além do bem e do mal, nas disputas de obras que lhe pareciam essenciais. Fez assim da Antígona não «uma conspiração permanente contra o mundo», como diz com prosápia no seu catálogo, mas uma deliberada conspiração contra a mediocridade imperante.
Andou devagar para chegar longe. Tenho a certeza que saberá envergar até ao fim, com garbo, a armadura de editor independente.
Depoimento escrito por Francisco Vale para a edição comemorativa «Antígona: 40 Anos + 1»
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