5.12.24

O Que Fica dos Criadores É a Sua Obra



Este texto resulta de uma resposta a um pedido do jornalista André Filipe Antunes, do Observador, sobre a notícia de uma relação amorosa de Cormac McCarthy com Augusta Britt.


Creio que, subjacente às suas perguntas, há uma concepção de literatura e arte diferente da minha, em que as obras possuem autonomia em relação ao carácter e à vida dos seus criadores.

Para exemplificar, nunca convidaria, mesmo que isso fosse possível, para tomar um café Céline, que era racista e simpatizante do fascismo; Caravaggio, que cometeu um assassinato e que por isso teve de fugir para escapar a uma condenação à morte; Ezra Pound, que enalteceu o nazismo; Heidegger, que foi cúmplice activo do nacional-socialismo e afastou Husserl da universidade; e Knut Hamsun, que elogiou Hitler. Mas isso não me leva a evitar olhar para A Flagelação de Cristo, não me impediria de publicar Viagem ao Fim da Noite, de ler com agrado Os Cantos de Pound, de achar Ser e Tempo uma obra fundamental da filosofia ou de publicar Fome.

Não são frequentes os casos em que um importante criador deixa que a sua obra seja de todo condicionada por influências da sua vida amorosa e sobretudo pelas suas opiniões políticas. Um desses casos é o da cineasta alemã Leni Riefenstahl, que realizou magníficos documentários como O Triunfo da Vontade ou Olympia, que são ao mesmo tempo deliberadamente propaganda nazi. Outros casos existem sobretudo em regimes totalitários, sendo disso exemplo o «leninismo» de Lukács.

A Relógio D’Água continuará a publicar a importante obra literária de Cormac McCarthy nas traduções que dela tem feito Paulo Faria.

Em relação ao caso amoroso que teve com Augusta Britt, nada há de reprovável em termos absolutos, mesmo que tenha sido uma relação marcada pela desigualdade entre um escritor então quase desconhecido de 42 anos e uma adolescente de 16 anos, marcada pela dureza da vida. Nessa relação que se tornou sexual a partir dos 17 anos de Britt, nada existe de abusivo, forçado ou não consentido.

De resto, em balanço recente para a revista Vanity Fair, Britt afirmou em relação a McCarthy: “Adorei-o. Ele era a minha segurança.”

Para situar os leitores, deve dizer-se que o autor de Meridiano de Sangue, Este País não É para Velhos e A Estrada conheceu Britt na piscina de um motel quando ela, que entrava e saía de um orfanato, apareceu envergando um revólver que roubara afivelado aos jeans. Desde os onze anos, levava uma vida em que foi muitas vezes agredida pelo pai ou nas famílias de acolhimento em que esteve.

Augusta Britt acabaria por ajudar à criação de algumas das personagens de Cormac McCarthy, que, como é natural, eram compostas de outras influências, amorosas e pessoais.

É claro que os leitores são livres de continuar ou não a ler Cormac McCarthy. É uma decisão pessoal. Mas, como já escreveu Javier Marías, creio que nenhum homem ou mulher passa por este mundo sem que uma mancha acompanhe a sua vida (haverá talvez excepções em escritores como Tchékhov, Primo Levi, Marías ou Lídia Jorge, mas nem nestes casos isso é certo).

O referido episódio na vida de McCarthy parece-me ter uma importância menor, excepto para os mais puritanos, que, em todo o caso, deveriam também censurar George Eliot, Colette ou Marguerite Duras, ou Édith Piaf, que tiveram relações amorosas com homens muito mais novos do que elas.

Num país com tendência a seguir apenas o que de pior vem dos EUA, não dei por que o meio literário português concedesse mesmo assim grande importância a esta notícia.

Vivemos numa época em que a vida, sobretudo a dos criadores, é vasculhada até à exaustão um busca de episódios condenáveis, mesmo que cometidos na infância. Enid Blyton é acusada de ser pouco atenta aos filhos, Salinger de não os querer por perto quando escrevia, J. K. Rowling de ser transfóbica apenas por reivindicar a sua biologia de mulher e Picasso é considerado mais um misógino devido ao modo como tratou algumas das mulheres com quem viveu. Woody Allen ou Kevin Spacey foram ostracizados mesmo sem provas ou apesar das absolvições. Creio que dentro de alguns anos esta época, que assistiu a importantes avanços nos direitos de algumas minorias e na afirmação das mulheres, será considerada sob vários aspectos censória, ingrata e sombria em relação a alguns dos seus principais criadores, de Picasso a Woody Allen.



Francisco Vale

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