21.1.22

De O Anjo Camponês, de Rui Nunes

 



«O anjo é sem enquanto, não o teve, não o tem, nem o terá. Sabe desde sempre o que chamavam ao filho de Hilde, chamavam-lhe tortulho, chamavam-lhe maricas, não tinha nome, e continua sem ele, morto, restituir-lhe-ão aquele que o baptismo lhe deu:

na cripta de Rosenheim, a omissão ficará reduzida a um traço entre duas datas.

Envelheceu, o anjo.

Taxidermizado.

Ou: envelheceram-no os meus olhos?


Irrompe a chiadeira dos pardais. Uma, duas, três, quatro, cinco badaladas. E o corpo desenha-se, de imperceptível em imperceptível, até à revelação: este é o meu corpo: uma merda de corpo, a água entornada no tampo de mármore da mesa-de-cabeceira, o vidro sujo que apaga o fulgor

da anunciação:

o vazio está escrito em maiúsculas, tão grandes, que não se sabe que nome, que letra, que bocado. Só traços. Um aqui, outro ali.

A intenção obscura de que voz?»


Esta e outras obras de Rui Nunes estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/rui-nunes/

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