5.4.21

Sobre «A Prima do Campo e a Coisa Pública», de Alexandre Andrade

 

«Este romance engendra um interessante mecanismo de construção. É como se nele se encenasse, ou se pusesse em prática a ideia de deterioração do romance, da ideia desse género. Nesse sentido se virá a falar, na segunda “sequela” de “destroços de ficção” (p. 206). Cumprido, então — ou quase cumprido, ponto importante —, o destino narrativo das personagens e do enredo, o autor, em vez de se lamuriar, ou dar entrevistas a cantar o fadinho da permanência fantasmática das suas personagens, vai pôr em acção um plano bem diferente. O autor suspende, nesse momento, os trabalhos da acção, que se queda aberta, por inconclusa, e surge em cena o anónimo “editor”. Este dirige-se ao autor do livro, chamado, afinal, percebe o leitor, Vera: amiga e, em tempos, algo mais de quem lhe escreve. É nesse momento que se procede a uma divagante e admirável sinopse dos acontecimentos do romance. Mas, curiosamente, a súmula, de forma assaz subtil, avança mais do que fizera a própria ficção, de que é a anunciada “sequela”. (…)

O interesse destas operações romanescas não reside na exposição que Alexandre Andrade faz da orgânica da sua criação, pois é esse um dos veios por onde correm as derivas do modernismo. O fulcro reside, porventura, na forma como Alexandre Andrade procede a esta desmontagem e que dá um carácter excepcional ao seu livro. Nem o autor é dominado pela ideia (repete-se, não nova debaixo do sol), nem se compromete a serenidade composicional e expressiva. A troca de identidades, através da qual o autor passa a ser alguém chamado Vera, é feita de forma tão astuciosa, e com tal sofisticação processual, que, uma vez mais, é muito menos a mecânica da verosimilhança o que fica a importar-nos do que a fruição de um edifício que nos acolhe e surpreende, sem chegar nunca à estridência.»


[Hugo Pinto Santos, «Os engenhosos destroços da ficção», «Ípsilon», 2021/04/02]

«A Prima do Campo e a Coisa Pública» e outras obras de Alexandre Andrade estão disponíveis em: https://relogiodagua.pt/autor/alexandre-andrade/


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