24.11.20

Gonçalo M. Tavares conversa com Alberto Manguel

 



«A erudição de Alberto Manguel e a originalidade de Gonçalo M. Tavares eram o garante de uma conversa invulgar. encontraram.-se na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra para uma cena da série documental Herdeiros de Saramago […].

Quando se iniciaram os preparativos para a rodagem da série documental Herdeiros de Saramago, Gonçalo M. Tavares manifestou de imediato o desejo de se encontrar, no episódio em que é protagonista, com um leitor muito especial: o autor de Uma História da Leitura. Ainda não estava sequer no horizonte a ideia de Alberto Manguel se tornar um lisboeta honorário. a doação à capital da sua célebre biblioteca, trazendo para Lisboa mais de 40 mil volumes, vai fazer nascer o Centro de Estudos da História da Leitura. alberto Manguel é um leitor entusiasmado e um entusiasta da obra de Gonçalo M. Tavares. O escritor português vê em Manguel um leitor que acrescenta novas camadas de sentido aos livros que escreve. O encontro entre ambos (presumivelmente o primeiro de muitos, agora que são quase vizinhos) aconteceu num lugar com fortes ressonâncias literárias: a magnífica biblioteca setecentista do Palácio Nacional de Mafra, lugar a que Saramago deu um passado mítico inesquecível.

Alberto Manguel: Este lugar onde estamos é um lugar imaginário.

Gonçalo M. Tavares: É incrível, sim. Deu origem ao Memorial do Convento, de Saramago.

AM: Ah, eu pensei que Saramago, com o Memorial do Convento, é que deu origem a este lugar.

GMT: [Risos.] Podia ser uma hipótese.

[…]

GMT: Eu tenho montes de cadernos com projetos. Seguindo essa ideia de Borges, qualquer dia publico os projetos. O que é bonito num projeto é que ele tem a potência de não estar ainda materializado.

AM: E o leitor não pode criticar-te um projeto. Tu dizes-lhe: ainda não está terminado. Katherine Mansfield diz, no diário, que quando escreve tem um projeto; e esse projeto é perfeito, como um chá que vai preparar. Tem a chaleira quente, o chá está pronto, mas, quando vai fazê-lo, descobre que afinal o chá não tem sabor. Era preferível tê-lo em projeto.

GMT: Eu gosto do projeto que é também uma síntese. Quando falo de síntese não é tanto da frase perfeita. É mais como se tivéssemos uma ideia que pode ocupar cem metros quadrados e tentássemos reduzi-la para dez metros quadrados, um metro quadrado, um centímetro quadrado… Uma linha de textos deve ter cinco milímetros quadrados. Portanto, é tentar pôr uma ideia que pode ocupar cem metros quadrados em cinco milímetros quadrados. Por isso é que eu falo da coisa como síntese e potência, e não como perfeição. a perfeição era estar lá tudo. O que eu vejo é o leitor a pegar naqueles cinco centímetros quadrados e a começar a desdobrá-los; passar para um metro quadrado, para dez metros quadrados, para cem metros quadrados. Como se fosse uma coisa japonesa em papel. Um desdobrar que é manual e individual, do leitor.» [Visão, 12/11/2020]


As obras de Gonçalo M. Tavares editadas pela Relógio D’Água estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/goncalo-m-tavares/

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