10.6.20

De Prazer e Glória, de Agustina Bessa-Luís




«A janela tinha ficado aberta durante a noite, não como um hábito saudável e vagamente implorante, como se da noite viesse qualquer espécie de transformação. Um ente espacial, por exemplo, navegando na galáxia, explorando os portos do desconhecido. Mas havia outro motivo por que ele sacrificava a escuridão necessária à sua insónia povoada de imagens grotescas que lhe ficavam da época ultramarina, como um botão de casaco mal arrancado, pendente do fio já gasto. Ele, João Baptista Pinheiro, não podia dispensar ainda o rumor florestal e a vida que ele transmitia. Era o caso que o seu modesto albergue, onde vivia agora como inquilino dum alfaiate modesto, tinha defronte a mansão dos Robim, com o grande parque verde que, na manhã chuvosa, parecia um desiludido tema para uma sinfonia, dessas que são tocadas em recitais de Verão para senhoras velhas e que dormem inocentemente com Ravel e Debussy.
João levantou‑se depressa e fumou um cigarro. O cheiro evaporou‑se com as rajadas frescas que varriam o quarto. Ele tremia e tinha um ar doentio; o crestado da pele já desaparecido, lívido na moldura da barba rala e encaracolada. Não era propriamente um homem bonito; tinha nariz curto, o que lhe causava mal‑estar, como se exibisse a prova duma doença. Essa contrariedade estimulava nele o sentido erótico e era uma forma de desilusão que se reprime com paixões despidas de culpa. As mulheres eram atraídas por ele com uma espécie de frenesim passageiro que se permitiam como uma breve pausa nas virtudes. De facto, João era de certo modo a incarnação dum fauno e explorava isso com algum jeito.» [p. 13]

Agustina Bessa-Luís recebeu o Prémio Camões em 2004. Prazer e Glória e outras obras de Agustina Bessa-Luís estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/agustina-bessa-luis/

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