«Este “Sou eu” contagia-se também pela evocação de uma personagem mítica que já antes havia surgido, primeiro, em Suíte e Fúria (2018) e, depois, num poema intitulado “Reminiscências”, publicado na edição n.º 23 da revista Telhados de Vidro (ed. Averno): a figura de Ulisses. Mas de mítico, na verdade, só preserva o halo do seu nome. Ulisses, aqui, é aquele que nunca regressa a Ítaca, à sua amada Penélope e ao seu filho Telémaco: “não tinha partido, […] a viagem fora um contínuo regresso. Um sonho. Como são todos os regressos”. À sua volta, apenas uma praia deserta, com lixo a dar à costa e gaivotas esgravatando os detritos.
Ora, o que não regressa evidencia-se, logo nas primeiras páginas, sob a forma de uma “sobrevivência”, para empregarmos um termo caro a Aby Warburg, ou de uma “imagem dialéctica”, segundo Walter Benjamin: a marca de violência que, no presente, mantém viva a fome insaciável do passado. Daí que esse “Sou eu” assuma igualmente o corpo de um tal de Odisseus (equivalente grego de Ulisses), motorista de um camião que “atravessa a europa” (assim, em minúscula) e que, “no interior de uma câmara frigorífica”, transporta um dos muitos signos da infâmia com que hoje se lê o tempo presente: “corpos uns contra os outros, dobrados uns sobre os outros, abraçados uns aos outros: não mais do que um corpo único. Quando os tirarem do grande contentor, não será corpo a corpo, mas bocado a bocado, como quem parte uma árvore […] transformar-se-ão em notícia, lida no minuto seguinte de um ecrã, entre o café e o cigarro.”» [Diogo Martins, i, 6/3/2020. Texto completo em https://ionline.sapo.pt/artigo/688248/a-coragem-do-deserto-o-corpo-todo-para-ler-rui-nunes?seccao=Mais_i ]
O Anjo Camponês, Suíte e Fúria e outras obras de Rui Nunes estão disponíveis em https://relogiodagua.pt/autor/rui-nunes/
Sem comentários:
Enviar um comentário